O regime epistêmico transexual como condição de existência da psicanálise e de psicanalistas
Gostaria de compartilhar com vocês a hipótese de que toda a psicanálise lacaniana, que nasceu justamente depois dos anos 1940, sua releitura de Freud, seu desvio pela linguística, já é uma primeira resposta a essa crise da epistemologia da diferença sexual. - Paul B. Preciado, em Je suis un monstre qui vous parle, 2019, p. 39
Talvez pelo comprimento do texto, pelo contexto de recepção desrespeitosa a ele, pelo estilo do autor ou por uma relação com o método reflexivo-discursivo atual - a qual ainda é enraizada, falha e indicativa das podridões dos laços hegemônicos -, não é um texto sem falhas. Não obstante, é uma obra formidável e sua leitura deveria ser prioridade a todes que não recusam a evanescência da adjetivação de "analista". Tal texto nos oferece a entrevisão de uma práxis verdadeiramente acolhedora e respeitosa.
O argumento consistirá em uma tentativa experimental de pôr em marcha aquilo que Preciado predica, em minha leitura, como condição de existência, nos prováveis contextos futuros, para a psicanálise. Defendo que a subjetividade (efetivação estrutural e ontológica de certos elementos e relações entre elementos (gozo, sexualidade, verdade, etc.) que se aloca enquanto estranha, queer, em relação aos moldes hegemônicos atuais (todos sob o guarda-chuva da racionalidade hétero-patriarcal colonial), transpassando seus moldes - e nem toda narrativa de transexual garante isso - é a versão por excelência do objet petit a. Tal objeto é lugar estrutural do que designamos pela palavra "fundamento", pelo menos em qualquer teoria que se pretenda psicanalítica por apontar, supostamente de modo adequado, os fenômenos com os quais lidamos.
Qualquer edifício conceitual que não aceitar isso merece desabamento. Uma greve por meio de um regime de desqualificação; de ausência de reconhecimento, invalidação e desprendimento de tal nome e seus status. Merece uma suprassunção bem feita no bumbum. Ou se aceitar escutar e incluir, enquanto nova pedra angular da Psicanálise, a transexualidade (em acepção ampla: facetas como a performatividade (Butler) e a denúncia do monômio sexo-gênero (Laqueur) a partir de um prisma de dinâmicas não só de aproximação da sexualidade, mas também de distanciamento), ou não se é analista nem se fala de Psicanálise. Poder-se-ia objetar, com um desprezo e ironia satisfeitos consigo mesmos, que há uma violência em condições como esta, tão rígida em relação a critérios de exclusão do campo.
Sobre isso, dois pontos: 1) nem toda violência é ruim; existem destruições que erigem uma estética (olhem bibliotecas velhas e ruínas gregas. Estou usando os vossos moldes restritos de estética), que servem para dar espaço, para respirarmos. 2) A mão d dormente de tanto dar tapas falando da sensibilidade da própria bochecha em relação à violência indica que ela não tem ouvidos, e talvez seja mais eloquente que sinta o ardor do golpe recebido de volta. Esquece-se que se sabe de algo crucial aqui (e a formulação desta frase é cirurgicamente proposital: o que é mesmo que é definido dessa maneira?): este campo nasceu violentando o senso-comum - e similares efetivações ideológicas antagonistas à verdade - em relação a tudo aquilo que tal senso resolveu postular como alheio a si, como suas bordas, como intransponível - no entanto, é perfeitamente transpassado, transversado, e transversal a ele.
Uma educação epistêmica é a maior prioridade no currículo intelectual de quem se pretenda à Psicanálise neste momento histórico do século XXI. Estudar Feyerabend, Fricker, Mignolo e outres é condição de inclusão como par de campo. Nnão é lógica, linguística, antropologia, etc. Estas indicações de estudos encontradas em Freud e Lacan já são o prenúncio da falha epistêmica da constrição ao regime de racionalidade tido por propriedade inerente ao campo, que é o do binarismo sexual. Mas não é porque ele nos serviu que deve continuar nos servindo. Discursos que usam a categoria valorativa e não a lógica em relação às partes políticas na formação de psicanalistas exemplificam aquilo de que falo.
Não é "importante" que se estude o percurso histórico de alinhamento dos grandes órgãos da Psicanálise do lado dos opressores e se pratique algo que vá contra isso. É condição de existência. É algo mais radical. Ou você faz isso, ou você não tem alçada, consciência política, ética e nem experiência para dizer que escuta de um outro jeito o sujeito. Ou você faz isso ou não é analista - seguindo a distinção entre analista e psicanalista, do S17, usarei apenas o primeiro vocábulo. "Psicanalista", per se, eu não sei o que é (p. 50). Tal predição por uma categoria lógica não é ingenuidade quanto a seu alcance. Também ela é limitada. Todavia é nela que se estruturará, neste objetivo, uma crítica imanente - e depois transcendente - à epistemologia onde se aloca a diferença sexual.
Este elemento deve ser atacado porque é ele quem sustenta exclusões e violências as quais, no fim das contas, nos recolocam de volta no lugar de violentadorxs, nulificando o reconhecimento que fazemos de injustiças socioeconômicas, por exemplo. "Nulifica" porque é um reconhecimento impotente, precisamente em função da pobreza epistêmica de nossa formação. É curioso que a idiossincrasia de nosso campo tenha sido sempre a de focar no que a sociedade nnão quer falar, mas não nos voltemos às coisas às quais não queremos dar espaço. A sexualidade não é um elemento imutável; não é um problema que deva ser abordado sub specie aeternitatis. Passamos décadas falando dela porque nnão queriam falar dela. As temáticas ao redor dela foram importantes por gerações porque as condições de subjetivação e os dispositivos que lhe servem não tinham o que hoje têm.
O lugar estrutural (físico, lógico, topológico) do "fundamento" no edifício psicanalítico (abarco aqui conceitos, operadores e gradações como sensação-impressão-hipótese-teoria-tese, postulado-axioma-premissa, etc. (isso deveria ser nítido, houvesse esta tal educação epistêmica da qual falo)) é preenchido por mais de uma coisa - inclusive por negatividade - cada qual em seu tempo. E, agora, como Anna O., dizem: "cale-se por um momento, analista, eu, monstre, quero falar". E recusamos. O quão patético é isso não está nos livros. Um dia desses escutei um relato de uma colega em pós sobre como um professor recusou uma colocação com este texto do Preciado. Em 2021, percebi que uma figura de relativa influência aqui em Recife, por não ter educação epistêmica, sequer percebe que não sabe diferenciar mal-estar de sofrimento.
Algumas horas atrás, hoje (8 de outubro de 2023), a Associação mundial de Psicanálise (WAP) e a IPA (Associação internacional de Psicanálise) anuncia solidariedade a Israel, individualiza casualidades naquele território, mas não faz o mesmo para a Palestina (bebês, idoses, mulheres, enfim, cidadãos aquém dos processos políticos deste país devem ser "porra loka" mesmo). Analistas continuam recusando diálogos com as ciências sociais, etc. Este campo está podre em diversas frentes e ele será bombardeado, com justiça, caso continue assim. Reconsiderar, então, posturas como a pretensão de considerar a teoria do discurso não como uma imposição de uma subjetividade sobre o inadequado do mundo em relação a ela, mas sim como o desdobramento dos pilares da realidade (S17, pp. 12-13).
Os 4 lugares e 8 funções da teoria dos discursos nnão necessariamente manteriam a mesma combinatória de relações internas à racionalidade que ditou seu número de elementos. Se supõe exausto tal campo apenas pelo pressuposto de que todos os elementos estão ali. É uma consideração de absoluto, o que é absolutamente incorreto. O mesmo é válido para as fórmulas da sexuação, não em relação à sua formulação, exaurida em função do elemento sob tratativa, mas sim em termos de sua situação de peso epistêmico no ideário lacaniano. Apesar de se reiterar que se trata de função e não de gênero/sexo, é curiosíssimo - para não dizer sintomático - que nnão se opte, então, por se afastar deste léxico. O autor dos neologismos. É como dizer "quero deixar claro que a dicotomia claro e escuro produz associações psíquicas racistas, violentas."
Não é o fim do mundo se começamos a usar expressões outras, talvez "função de cuidado" e "função de delimitação"? Isso para não falar na patética linha imaginária de uma suposta gradação entre travestismo e transexualidade, que se depreende da obra lacaniana, no S4 e no S19. A relação do sujeito com o gozo, com o desejo, com a castração necessariamente muda se as modalidades de saber e de verdade se apresentam de outra maneira, ainda que sob as limitações das formas saber-viver. Se há uma recusa à desisterização compulsória pelas nossas delimitações cotidianas, supostamente pragmáticas, da topológica dos limites que impomos aos "por quê's?" das crianças, não vem daí como corolário que se confunda coisas como órgão e significante e necessariamente se finalize na transexualidade enquanto proposta de resposta.
As transições não necessariamente são o fim, e aí há um erro em Lacan. É, de novo, supor o último "por quê?". É, de novo, recusar as consequências implícitas do que ele mesmo, enquanto "analisante" que era ao discursar seus seminários, criou e não sabe: se o autre é o petit a (S17, p. 12), e este a é o fundamento, recusar um passo a mais dado pelo outro, que pode ser a retomada de uma histericização em relação ao desmascaramento das supostas finalizações de nossos gêneros, é recusar não só o saber, mas a existência mesma do fundamento, o que é incoerente. Além disso contribuir para colocar como novo capitonê o que recusaram enquanto o que impomos socialmente que deveria sê-lo é confundir sentido com significado.
As formas de assumir o próprio não-saber dos analistas é uma forma arrogante, é uma forma que não sabe assumir-se enquanto aquilo que se é. Também aí, trocar o vocabulário: burrice. A valoração de melhor e pior é estreita. Seus parâmetros são arcaicos. Nem por isso se apressariam em contestar algo em relação ao qual me adianto logo: é evidente que o saber vivencial nnão é condição de existência e de suficiência ao mesmo tempo. Isso implica dizer que apenas assassines são capazes de nos dar o dado fundamental para uma ética sobre esta violência. Se é bom ou ruim matar, só eles poderiam dizer. As pessoas engravatadas apenas sabem e matam indiretamente, não teriam moral para legislar nada sobre. Não sejamos ingênues.
Mas é condição de necessidade, sim, daqui pra frente, que não se opere com o redutivismo de pôr em uma chave de desvio qualquer subjetividade que incorpore e se faça somathèque do infamiliar, da alteridade por excelência, e do que pode ser apenas mais um momento em uma busca que não nos autoriza a dizer que esta é a proposta toda de resolução das angústias que isso, ainda mal nomeado como sendo os limites do sexo, nos impõe. Não é um ataque ao campo no sentido de se propor vir de um outro lugar. É um levar até às últimas consequências seus pressupostos incorretos para ele mesmo se matar. Não está evidente que haja uma recusa da significação do falo (S19, p. 17). É também saber mais dele que está em jogo, ao experimentar um ser-para-o-sexo (OE, p. 362-363). Uma denúncia da falta de imanência e recorrência à transcendência pela transexualidade não soa estranho.
Se a descrição do fato já é advinda das possibilidades descritivas de alguma teoria (FEYERABEND, in: Against Method, p. 27) - muitas vezes da teoria que se pretende construir. Ela já é posta em prática. O processo de fundamento incorre em uma petitio principi sofística. Se algo análogo é válido para o exame, na medida em que este só pode ter sucessão lógica em relação à própria validade (HEGEL, in: Fenomenologia do Espírito, p. 75), nos perguntemos sobre se é uma recusa válida a recusa a qualquer nova variável que viria pela explicitação simples de outros motivos para além dos eixos do gozo e do falo para um narrativa da própria sexualidade que não seja binária.
Como Preciado diz, se trata, antes, da "vingança do objeto", e, lembremos, o objeto da psicannálise é o objeto a, é a objeto, é abjeto (S13). Que seja dissonante gramaticalmente, não indica que é coisa que está incorreta, não necessariamente (não esqueçamos que a [suposta] inadequação [insistente] da coisa nos obriga a lhe dar necessidade (S17, p. 45). Não é contingência a transexualidade. É um momento da trajetória tateante de nossa ignorância em relação ao que somos). Pode ser o caso de a gramática que estamos usando ser enganosa. O objeto da psicanálise é, sempre, o deslocamento infinito que nos desconforta. Então, de que adianta voltar pra a saia das nossas mamães teóricas, se lá, tentando evitar ver o visível, continuamos tentando evitar ver o evidente? Talvez tenha pistolado - ou talvez é só uma trap. Who knows? De toda forma, "psicanalistas da transição epistêmica, juntem-se a nós! Vamos construir uma saída!" (PRECIADO, 2019, p. 52).
Comments