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Foto do escritorMatheus Dias Vasconcelos

FALA!

A fala tem um h. Tem um h em algum lugar de si. Tem muito h, em verdade. Talvez seja só h. Não se percebe que há o h porque ele é silencioso, naturalmente. Isso não significa mudo. Ele fala. Daí podermos extrair dele reflexões assim. A fala tem um h despercebido. Não obstante reluta-se em perceber que é precisamente por isso, por esse não perceber, que ela é fala. Não perceber isto é falha.


Historicamente, a delegação da fala para o outro ocorreu por diversas razões e sobrevive há séculos. Desde uma recusa "ponderada", como os gregos que preferiam o silêncio, por ser supostamente mais nobre, até uma atomização das identificações em microculturas que terceirizam os discursos cotidianos no momento contemporâneo, perde-se de vista o que de positivo subsiste na língua que fal(h)a e é parida sem outorgarmos sua construção a outrem - além daquilo em que estruturalmente esse outrem é constitutivo dela. Há três pontos imiscuídos nesta fala aqui escrita: 1) os momentos ambivalentes do sujeito em relação à fala; 2) a fragilidade na pressa em amar todas as culturas subalternas; 3) a perda da obviedade e da certeza na fala.


Não é da época das universidades o discurso universitário. Usar o outro enquanto um parâmetro de seguridade daquilo que se considera um "saber" é prática antiga. Os partícipes das cidades-estados no período pré-socrático, ao se filiarem a escolas de pensamento, predicavam sua fala. Ser "parmenidiano" implicaria concordar não só com a ideia, mas com a forma em que ela se apresenta e é coletivamente entendida; implicaria concordar com o fato de ter sido recebida enquanto um produto suficientemente finalizado (segundo os parâmetros mentais daquela época), e não construída ou progressivamente descoberta. Na época de Dante, o mesmo ocorreu a partir da Divina Comédia e seu processo de unificação dos dialetos italianos, unindo mais de 19 culturas no todo geopoliticamente coeso que reconhecemos como a Itália atual. Em certa época, engraxates o citavam de cabeça, incorporando as lições morais de sua obra à vida cotidiana. Encontramos aqui um pináculo deste processo de extrusão da autoria da própria leitura do mundo.


Quando avançamos um pouco mais na história mundial notamos um movimento cada vez mais popularizado de aproximação e comparação entre as situações dos referentes culturais e histórias individuais. O povo começa a recorrer às óperas, peças e contos para transmitirem aquilo que querem falar, seja a nível educacional ou conversacional ("conversa" é usada aqui em sentido de coprodução de versos (frases com absoluta sinceridade e autenticidade/estranheza sobre si) em qualquer assunto pertinente a quem estiver envolvido na troca). A diferença agora é que não só aceitam que este Outro pode falar de modo muito mais eloquente a experiência única e irrepetível pela qual passaram, como acontecia com o autor da Divina Comédia, mas também começa a existir um reconhecimento e prestígio cultural por quem consegue fazê-lo. É, ao mesmo tempo, um display de dotes cognitivos de memória e articulações textuais que resultariam em uma leitura supostamente arguta e acurada das situações vividas.


Pode-se questionar o não-dito em toda a história da Grécia e avaliar que não é representativo da estrutura social daquela época o fato de alguns terem tanto investimento afetivo em ideias a ponto de pararem no meio da rua para discuti-las e se fazerem ou elevar tanto algumas referências corporificadas em pessoas a ponto de segui-las, e portanto não haveria tanta distinção assim entre aquele período e o período de unificação da Itália ou o Elizabetano I na Inglaterra, na aurora das publicações de Shakespeare, e que, sim, muita gente não se importava com esse tipo de coisa e já terceirizava suas falas ou usava como única métrica de validade uma autoridade qualquer. Por outro lado, mesmo diante de todos os filtros da história contada pelos dominadores, também existe uma lírica e um rico uso da linguagem nas personagens desprovidas do que era altamente valorado nos contextos helenísticos, arcaico, clássico... assim como em amas e em outros personagens da plebe inglesa os quais operavam muitas vezes uma figura de astúcia, de "sabedoria da vida", ou, em versão mais moderna, "de rua", a qual, antes, se manifestava de forma explicada linguisticamente; hoje, apenas por supostos aforismas sem explicação, como se fossem mantras obscuros que se cristalizam em seus sentidos e apenas são aceitos: "não se volta com ex", repetem. Por quê? Qual a justificativa para fazer disso um imperativo? Outrora usava-se de uma imagética rica, com múltiplas e simultâneas figuras de linguagem. Hoje há um escoamento da riqueza na língua. Se porventura duas pessoas concordam com tal aforisma, escanteiam o fato de que chegaram a essa conclusão por caminhos absolutamente distintos e únicos. E o que deveria importar, ou pelo menos não ser dispensado de importância, é o caminho. O destino é só o fim e o fim é pouco pois depois dele não há nada.


O movimento de extrusão da autoria da própria fala e da consequente externalização da autoridade continua intensificando-se hoje em dia. Lembremos que a história de significados de uma palavra pode deixar uma contiguidade de traços psíquicos que moldam os sentidos histórico-sociais delas e que a partir disto transmitimos o conteúdo do mundo entre gerações. Nesse sentido, é válido salientar que há um traço na etimologia e nos sucessivos significados atribuídos ao termo auctoritate, que é um traço psíquico de potência maximizadora e criadora, quase a nível de deificação. A palavra também tem raiz em augere, que significa acrescer, aumentar, fazer-se mais desenvolvido: em seu tempo etimológico, estas coisas eram atividades atrelada aos deuses. Investimos afetivamente e fazemos homenagens - às vezes apoteoses - de uma autoridade, uma influência, uma pessoa que supostamente sabe.


Devemos nos perguntar por que essa cristalização de sentido ao termo continua hoje e por que as subjetividades contemporâneas são tão reticentes em serem autoras eloquentes de sua história, restringindo-se a, no máximo, contestarem um espaço íntimo inviolável mas que na maioria das vezes consiste de meias-palavras e meias-imagens; sensação de sentido naquela experiência mental vaga de construção/percepção das formas de ler a nossa própria experiência, voluntariamente optando por um encarceramento da experiência interna: "na minha cabeça faz sentido, é difícil de explicar, tu entendes, né?" Existem hoje subjetividades que se angustiem por não serem elas a elaborarem suas questões, ainda que aos tropeços, com línguas presas e palavras arrastadas? Ou apenas há as que vivem uma mendicância e desespero por qualquer coisa parecida com uma construção feita pelo outro, ainda que incompletamente, e que serviria para si própria?


Impossibilidade de investigação, cansaço, estrutura moral judaico-cristã que preconiza um certo tipo de humildade... há uma miríade de possíveis motivos para isso. Fato é que se antes recorria-se a sistemas textuais com certa densidade - o que pressupunha capacidade avaliativa deles e, por conseguinte, consciência e habilidade para mais explicitude quanto aos elementos constituintes da própria experiência interna e como transmiti-la -, hoje a coisa se torna mais simplória.


Não se trata, sob hipótese alguma, de uma atualização e retomada do debate sobre alta e a baixa cultura. Seguindo Antônio Cândido, não creio que isso exista. Mesmo na cultura popular podemos ver produções densas, neste sentido de riqueza em dispositivos linguísticos já aludido acima. Também não se trata de valorar a arte única e exclusivamente a partir do parâmetro de processo e conteúdo técnico implícito em sua construção. Não obstante, dispor desse saber no contexto do enriquecimento da fala é crucial. Não é uma escolha (est)ética. Está tudo bem apreciar e gozar o simples, desde que se saiba e se aprenda a gozar o não-simples também, pois há vantagens políticas e subjetivas em apreciar de forma plural a própria apreciação. Gozar só de uma maneira dá brechas à produção dos instrumentos de gozo de forma padronizada, facilita dominação, estreita subjetividades. Plurificar, então, os critérios das coisas a que damos nossa boca, que não fala por si, para dizer que o outro fala por ela, é imprescindível. Assim, sente-se mais de si, do mundo, do outro, enfim.


Entre "ocupo dedos com anéis pra não puxar gatilhos" e "haters gonna hate, hate, hate, hate", ambos colocados em seu contexto e valorados a partir dele, encontramos uma exemplificação desta diferença a que me refiro.


No primeiro caso, há evidências da consciência do emprego de múltiplos sentidos. Não é apenas que o anel torne "inecaixável" um dedo no gatilho por sua espessura típica comum a certo estilo e poder aquisitivo, mas também que a estética pode salvar alguém da violência e que para um homem negro a produção artística e o mantimento de tal imagem é uma salvaguarda para uma realidade que põe a vida em risco. Não é que não possa existir um sentido mais robusto no segundo verso. Propor como critério definidor de uma ontologia a própria ação do ser é uma tese elaborável e cujo valor de sua qualidade demanda uma investigação prévia, ou seja, não está claro que é uma ideia boa nem que é ruim. Todavia, indo ao encontro da autora do verso e tudo o que a rodeia, não há indicação alguma de que houve intencionalidade aí. Há apenas uma tentativa simplória de defesa contra a opinião não-positiva reduzindo o outro àquela ação, o que pode tanto indicar uma arrogância em pressupor que o traço que o outro me mostra é o traço definidor e principal dele, como também uma análise pseudo-psicológica de que há prazer e inveja dos que têm pouco em relação aos que têm mais/não têm certa coisa (e enquanto, seguindo Lacan no S17, se quiser falar da riqueza sem se investigar o que é o rico, ideias como essa não passarão de pseudo-psicologia. Assunções apressadas e pueris. Pode ser o caso, sim, de se tratar de inveja e prazer em odiar, mas não está evidente o porquê seria).


Pluralizaram-se as fontes de terceirização da fala: memes, produções audiovisuais que servem como fala-referência, mercadorias. Terceirizamos expor nossos gostos através de camisas as quais dizem nossos autores, frases, animes favoritos, usamos a ambiguidade do flerte em memes pré-estruturados e padronizados, estabelecemos uma relação de distância de autoria até mesmo no uso do humor: se não der certo, "era só uma brincadeira". Fugimos do desconforto da aposta alta e da derrota, no caso de fracasso, da mesma maneira que se foge de qualquer brecha em silêncio nas conversas hoje em dia, onde tudo é ruído.


Não é que não possa existir uma relação outra com essas coisas. Pode-se usar uma camiseta de banda pelo esmero do amor em relação a ela, o qual se manifesta através da homenagem em deixá-la com frequência nas coisas que ocupam nossa memória ao nos colocarmos em uma situação onde o estímulo para relembrar este dado seja constante/frequente. A questão é que quase não existe uma motivação como esta. Infere-se esta conclusão a partir da relação destas coisas com outros comportamentos que portam a mesma característica de terceirização da fala. Fica cada vez mais improvável que se trate de outra coisa quando coexistem dados como: perda da capacidade comunicativa; predileção por contato parassocial; coexistência entre globalização e índices de solidão crescente, etc. Estes outros elementos fazem com que seja muito mais provável que se trate de uma transmissão de mensagem de uma sociedade que está desaprendendo a falar; de uma terceirização da própria fala, e não de qualquer outra coisa.


A covardia/inibição/insira-aqui-outra-palavra-cabível diante da criação da própria fala, da organização autoral das palavras usadas e da eventual - não, inevitável, caso a situação continue progredindo assim - posição fatídica em ocupar tal postura se banalizou. A relação com a língua e com a linguagem se empobrece. Usa-se o advérbio "literalmente" sem nenhuma noção do quê ele significa e não se sabe mais articular os próprios elementos da experiência por sequer ter organização quanto às relações lógicas que organizam a sintática da linguagem. Não há educação epistêmica pra isso. Usamos o termo "rolê" para mil significados e situações e cinco minutos depois nos queixamos de imprecisão no nosso vernáculo: "não é exatamente isso..." "não é essa a palavra...". Encontramos identificações em materiais onde os discursos e momentos de conexão entre personagens e ideias são coisas vagas e elusivas quanto a seus elementos constituintes. São diálogos com a mesma abrangência de uma letra musical, estruturada para captar uma larga audiência.


De forma similar, somos estreitos e redutivistas quanto aos critérios identificatórios: se o sujeito partilha alguma dimensão comigo (e.g.: ser da mesma raça ou da mesma classe que eu) atribui-se apressadamente uma pertinência à mensagem que ele veicula e depois fica-se surpreso quando é revelada alguma falha ou diferença dele. Talvez por cansaço, por desespero, por pressa em externar nosso apoio às pessoas subalternas... É como se substituíssem a nossa pintura a ser exposta em um museu por outra que partilha com a nossa apenas algumas cores, e considerássemos que há um consolo nisso porque pelo menos os outros estão vendo as cores que pusemos na nossa mensagem. Isso é insuficiente.


Multiplicam-se esses outros que falam por nós ao ponto da atomização: diversas influencers, personagens de podcasts, páginas que trazem falas sem muita substância em tweets que não demonstram bom uso da concisão eloquente e aforística, mas apenas um bem-vindo canvas para depositarmos ganchos ambíguos (não por uma construção elegante da ambiguidade, mas sim por falta acidental de elementos), incompletos ou meramente participativos quanto ao que queremos dizer. Em função do progresso desse sistema de recrudescimento linguístico avalia-se como competente, genial, "fora da curva" pessoas que falam coisas banais nas redes; músicas que tratam sempre do mesmo tema, sem iterações ou possibilidades de novos entendimentos sobre o falado; livros os quais, apesar do lirismo na dimensão fonética, não são captados em sua tese porque a capacidade reflexiva e interpretativa está decaída. A crise comunicacional é uma de magnitude similar às crises sistêmicas, como a ecológica.


É evidente que se trata de uma questão multideterminada. O empobrecimento do sistema educativo a nível global e a multiplicidade de fontes de entretenimento lapidadas sob o eixo do consumo rápido e não reflexivo são o principal modo de interação do sujeito contemporâneo com o que forma seu vocabulário. Se antes as contrações se restringiam a certas categorias morfológicas das frases, 'twas like that, hoje em dia se trata de abreviação de todos os termos possíveis: se vc n tá lgd, menó, n nóia.


Perdem-se os letramentos. As pessoas supõem que ações são falas inequívocas em seu sentido. Não se sabe começar ou terminar as coisas com transparência, com honestidade e esforço para alcançar com o máximo de fidelidade possível o significado idealizado à própria mensagem no ato de transmiti-la ao outro. Apenas a colocamos enquanto um elemento dentro de um quadro com cinquenta elementos e esperamos que o outro a tenha entendido - não, mais que isso: nos convencemos de que o outro a entendeu; nos convencemos de que é "óbvio". Como se eu mandasse um meme a uma pessoa com quem quero transar com dez coisas acontecendo em um quadro e uma dessas coisas, desenhada minusculamente e de forma secundária, fosse duas figurinhas transando, e eu dissesse "eu e você", sem especificar ao quê das dez coisas estou me referindo. Afinal, há referências culturais bem sabidas. Mas pergunto: silêncio, como diz a cultura, é necessariamente consentimento? Então uma mulher que não está falando verbalmente, pela boca, um "não" a um homem que insiste em fazer algo com ela, quer mesmo o que ela imagina que ele queira fazer? Privilegiamos o lugar de fala e que cada um fale por si; recuamos nas pretensões universalistas quanto a qualquer tese que levemos a público, mas ao mesmo tempo queremos imbuir os outros de fala e significado? Silêncio pode significar infinitas coisas. Fala também. Mas na fala, pelo menos, disputa-se com o máximo de ferramentas possíveis qual o sentido que deveria ser utilizado para a próxima fala e a continuação do diálogo. Surpreende a quem que, via de regra, os contatos de qualquer ordem hoje em dia comecem ou por script ou por desengonço? Surpreende a quem que os finais aconteçam por ghosting, por ausências de despedidas e afins?


Este estado de coisas é tão pervasivo e insidioso ao ponto de pensarem que as pessoas ciente da validade dessa argumentação obtêm direito de chegarem às conclusões que quiserem quando se virem diante de um outro que não recorre à fala direta e espera que exista obviedades nas relações que formam no mundo. Mas o que busco transmitir é precisamente o contrário: não existe cenário onde haja total legitimação para se assentar em qualquer noção de seguridade quanto ao pensamento que formamos acerca do outro. Menos ainda está garantida uma legitimidade para tirarmos conclusões sobre ele. Claro, podem existir apostas seguras, bons palpites com alta probabilidade de acerto. Mas é só isso: uma probabilidade. E mesmo se o palpite estiver certo, estará errado, graças à incongruência entre dois imaginários. Se ele quiser falar que estamos permitidos a fazer tais assunções, que fale, mas ele também estará errado - a menos, é claro, que abandonemos a epistemologia do inconsciente e suponhamos que ele se conhece por completo e é impossível de mudar, o mesmo sendo válido para nós.


Tudo isso serve como pilares para um mal entendido: confundir a crescente pseudo-concisão a partir destas terceirizações, abreviações e acelerações na transmissão de mensagens com um domínio e entendimento pertinente delas, não só por si mesmo mas também por parte do outro. Cria-se a crença de que pelo fato do outro partilhar os mesmos signos, possui significantes que se relacionam com os meus de forma produtiva e oportuna. Porque ele fala as mesmas palavras significa que ele recheia estas palavras com os mesmos sabores que eu? Não.


Pensar que certas falas são mais condicionadas e operam mais em um registro do quê em outro, à guisa da noção de fala vazia e fala plena de Lacan, mas destituindo-a de uma valoração moral quanto a um registro ser melhor que o outro, como o autor o fez, parece ser uma boa inflexão para alcançar uma melhor leitura da problemática. Isso porque o imaginário tensiona a categoria de certeza. A certeza genuína dispensa o debate. Se há um conteúdo mental (i.e.: uma ideia, um argumento, até mesmo uma impressão, uma sensação, intuição e coisas mais vagas) da qual estamos absolutamente certos/as/es, não há razão para externá-lo. Sendo o outro um outro, - e nós sempre já sabemos que ele é um outro - qualquer justificativa para externalizar uma certeza, como "quero ver como essa pessoa reage; como ela avalia isso, etc." é falha na medida em que já sabemos que não será da nossa forma. Isso significa um desejo de testemunhar uma apreensão outra que não a que temos: se existe uma forma cativante de conceber aquilo que concebo como certeza, porque eu a desejaria descobrir se já possuo uma relação finalizada com a coisa da qual estou certo? Se há uma forma insatisfatória para mim de concebê-la, porque iria buscá-la se tenho uma melhor?


Se temos um brinquedo mecânico e sabemos que o apertar de um botão sempre, inequivocamente, se transformará em uma resposta padronizada, não faz sentido apertá-lo novamente. O gozo que faz com que apertemos de novo implica o desejo de mudança: ele está cada vez mais perto de quebrar e gerar outra resposta diante do acionamento de seu mecanismo. Se queremos apenas reviver a lei aparentemente inviolável da reação padronizada também isso pressupõe uma dúvida, do contrário a certeza teria de ser conceituada a partir de uma vigilância constante e estado imutável quanto aos regimes de atenção. Se não apertar gerar qualquer estado de inconstância e desassossego estamos diante de uma necessidade de permanência do objeto, similar a como ele é no caso da criança. Se ele não permanece, ele não existe. Entendem o que quero dizer? Isso já deveria ser óbvio?


Além disso, se sabemos que a mensagem que externamos não é ouvida tal como a externamos e que além disso é diferente da experiência mental que tínhamos sobre ela antes de externá-la, assumimos, como consequência, que matamos a certeza ao falar. Qualquer fala é a destituição de um valor pretensamente absoluto e imutável de si mesma. Falar é pôr em perigo o que a fala fala. Afinal, se quando ela se torna fala ela só fala outra coisa, será que temos qualquer certeza, na medida em que a sensação é sensação sobre alguma coisa e essa "alguma coisa" só pode ser se for articulada em referência à linguagem? Esse "só fala outra coisa" não é indicativo de nada? Se tratará, sempre, de uma culpa da limitação da linguagem? Então já sabemos todas as possibilidades contidas nela e avaliamos que nenhuma dá conta de nossa experiência? Mas, então, porque buscamos, "seguimos", nos apaixonamos pelos referentes que tornam o mundo "mais claro" pra nós através de suas produções artísticas? Se sabemos tudo da língua, por que tão poucas Lispectors e Guimarães Rosas? Será que não é melhor dizer "há uma insuficiência na minha limitação na linguagem"? Não no sentido de uma repreensão e responsabilização moral, e sim no sentido de duvidar. Duvide.


Isso nos leva a concluir que qualquer discurso sobre certeza é incerto e ela só pode existir enquanto experiência individual intransmissível. E, em existindo, nada garante que corresponda a categorias da/presente na realidade, como verdade, sentido ou Real. Talvez se trate de um mecanismo paralelo trabalhando para este estado de coisas: a obviedade. Em verdade há um traço em comum entre certeza e obviedade. Onde supomos obviedade há um longo e silencioso trabalho de assunções sobre o outro; assunções pautadas em uma sucessão de interpretações convenientes quanto ao que imaginamos ser o entendimento dele sobre aquilo que falamos. Uma história de certezas se transforma em premissas para a avaliação de que não há outra possibilidade que não a de saber completamente, ou seja, saber com certeza. A diferença é que agora supomos isso não só em nós mesmos mas também no outro.


Toda obviedade é construída. Mesmo as leis cujo tempo de validade ultrapassam em muito as expectativas atuais biosfera, como a lei da gravidade, tiveram de ser interpretadas, muitas vezes incorretamente, até o ponto do entendimento. Mesmo um caso-limite, como o instinto, foi construído por um processo intergeracional de adaptação. Em situações de partilha de referenciais, como em uma relação romântica estável, erigimos a expectativa de que o outro inevitavelmente conhecerá todos os nossos referenciais e se posicionará a partir de um conhecimento absolutamente límpido sobre eles e sobre como eles interagem, portanto, sendo "óbvio" para ele o que fazer, dizer, sentir. "Eu já falei que não gosto de x e foi x que você comprou!" Falou? Como foi feita a fala? Como ela foi escutada? Falhas de memória são permitidas? qual o método de exame para nos permitimos achar que tal ou qual informação é consciente na cabeça do outro? Essa expectativa é não só ingênua como perigosa e mirante de um horizonte de compreensão imaginário absurdo. Até porque tanto os referenciais de quem exige essa compreensão mudam, como a relação entre eles também (posso ter começado a gostar de x, posso ter me tornado indiferente a ele, etc.). Além disso deve ser concebida a legitimidade do outro mudar, e simplesmente ler toda a situação de outra forma. Ninguém vê a mesma cor. Ela é preenchida por experiências únicas. A frequência das ondas no espectro visível é apenas a sua linguagem formal (i.e.: simbólica), não a sua linguagem toda. A linguagem toda não existe. Mas a fazemos ainda mais incompleta permitindo a sobrevivência de expectativas como a de que algo seja óbvio para o outro, ou seja, dando muito, demasiadamente muito, palco à dimensão imaginária da língua. O mais próximo de um juízo acertado sobre o que queremos dizer só será possível perante a fala. Só então ela será sem h; só então ela fará, ao invés de só dizer. Todo o resto é falha.


Isso tem implicações em diversas outras temáticas: como amamos; como se constituem nossos silêncios, etc. Além de ter o potencial de repensar temas como o amuo, a performance de "bicudo(a/e)" e similares contestações intersubjetivas de entendimento. Talvez volte a falar sobre, mas já falei demais. Vocês já entenderam.

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