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Foto do escritorMatheus Dias Vasconcelos

POLISSEMIA INTERSECCIONAL

Pode-se argumentar que a leitura psicanalítica situa a palavra em um estado o qual agrupa algumas características constituintes de si que nos dão abertura a uma nova práxis. São duas destas características: a impossibilidade dela se reencontrar em um sinônimo e, ao mesmo tempo, a eterna condenação à polissemia. Assim como qualquer código formal não esgota a experiência mental de qualquer palavra (pois há um conjunto de circunstâncias que se agregam à história da nossa relação com essa palavra, circunstâncias que são únicas, irrepetíveis e, em grau maior ou menor, intransmissíveis), é precisamente por estas circunstâncias, as quais são sempre diferentes em um outro, que o único ponto em comum - as tentativas de limitação de seu significado pelo código científico, linguístico e afins - garante que toda língua está fadada ao mal entendido, tendo tantos significados quanto seres falantes. Por isso, também, ela está fadada a falar indefinidamente. Dirigindo-se a si mesma ou tentando acertar o ritmo de uma dança com a própria limitação. A língua é um conjunto de palavras e de modos de se relacionar com ela (des)acordados socialmente. Ela seria constituída pelo conjunto de significados ignorados os quais ainda permitem um nível de funcionalidade pragmática e constituem a história da língua (LACAN, in: Outros Escritos: O Aturdito, ed. Zahar, p. 492).


Isso nos diz que a palavra não é um signo, mas um "nó de significação" (LACAN, in: Escritos: Formulações sobre a causalidade psíquica, ed. Zahar, pp. 167-168) constituído por nossas impressões, afetos, história e desenvolvimento presentes nos momentos de efetivação dessas palavras. Nos enodamos uns nos outros e nos resta uma sempre crescente entropia comunicativa, onde as cordas dos nossos anseios apertam e vibram cada vez mais, indo a um grande nada, em um regime de energia que nos remete à noção do gozo do Seminário 17 de Jacques Lacan.


Se insistimos em transmitir uma mensagem completamente satisfatória (seja lá o que isso signifique: ser entendide, escapar da possibilidade de ambiguidade/não-entendimento, etc.), a língua é uma repetição, o que significa um princípio do prazer, o que, por sua vez, nada mais é que o limite do gozo (LACAN, in: S17, pp. 43-44). Insistimos no mantimento imaginário de uma realidade onde exista a repetição e não haja perda. Perda de tempo, perda de fala, perda de nitidez da própria fala, perda da oportunidade de finalmente falarmos tudo de um jeito suficiente.


Claro, se "repetição" é a ocorrência do que já foi, então ela não é, porque já foi, e se já foi, não pode ser (KIERKEGAARD, in: Repetition and Philosophical Crumbs). Se fosse, não existiria um "já ter sido". Simplesmente seria, e repetição, novamente, não existiria. Temos de ter nitidez entre categorias ontológicas que defendam a existência de um ser atemporal, o qual serviria como um facilitador mental de reconhecimento e que nos faria pensar que se trata, não de uma repetição mas sim de estabilidade, e repetição enquanto um evento ou acontecimento, o qual, por definição, sempre carregará a diferença consigo: na segunda vez, ocorre em outro momento do tempo, em outro momento do espaço, da realidade, etc.


A polissemia tem sua dimensão individual e, também, a formalizada, pública, reconhecida não só a partir dos referenciais codificados oficiais mas também a partir dos sentidos que em determinado momento histórico, por motivos políticos, uma palavra toma e que são reconhecidos informalmente (o que não quer dizer sem rigor). O conjunto de sentidos ignorados em determinada polissemia guarda estreita relação com a forma com que o agente do discurso articula as dimensões, ou secções, de existência do indivíduo. As secções consideradas em uma análise denunciam não só a hierarquia de prioridades da sua fala em esfera pública como também evidencia a importância de uma importância maior concedida a uma educação epistêmica (significando, com o termo episteme, uma oportuna posição em relação ao que constitui o contato do sujeito com o saber, resguardando com isso possibilidades reflexivas e analíticas).


Considerando a dinâmica de condenação à produção e hegemonia do discurso universitário (já aludi a isto em outro texto: https://encurtador.com.br/pgfu0); considerando o cego privilégio "identitário" em que uma ou outra secção da vida de um indivíduo já pode ser determinante do referencial epistêmico da fala de alguém (e.g.: se compartilhamos o mesmo solo na dimensão raça, opero com pressupostos implícitos como o de entendimento mútuo das tragédias vividas e pensadas), é revelador a total abstinência de leitura das fontes conceituais sobre as quais pautamos nossa ética hoje.


Por exemplo: muito se fala de interseccionalidade mas poucas são as vezes onde se demonstra uma compreensão realmente afinada com o que Creenshaw escreveu (CREENSHAW, in: Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics). Não se opera uma inclusão de situações de discriminação, que foi o que a autora defendeu. Apenas privilegia-se a exposição de uma combinatória de sofrimentos onde só se usam as dimensões que mais tocam ao emissor da fala. Se o indivíduo é uma mulher em má posição econômica, o foco é na dimensão do sexo e da classe; se o indivíduo é negro, hétero e cis com boa situação econômica, o foco é na dimensão racial e raramente se falará de classe. Em função da noção precipitada de que vivência e partilha de dimensões aumenta a chance de pertinência da fala é comum que se produzam coisas que se pretendam interseccionalizadas e, ainda assim, cada agente dessa produção fale apenas da dimensão que lhe importa. A ironia de que em outros momentos falem sobre alteridade e camaradagem é garantia de diversão.


O mesmo ocorre com a disputa pelo lugar social e pela identidade epistêmica da Psicanálise. O discurso de que ela não é trabalho é equivocado na medida em que se privilegia o elemento da ausência de um saber procedural, tanto na formação como na atuação, e completamente ignora o conjunto de elementos que constituem o trabalho e estão presente no ofício de quem escute. Este discurso é hegemônico neste campo, na maior parte das vezes efetivando-se por quem não é muito tocade por questões de classe. Privilegia-se o significado "lógico" e desconsidera-se, insensivelmente, o significado ético. "Lógico" dentro do referencial de adequabilidade às leis internas do léxico psicanalítico; léxico que está ficando paralisado no tempo e alheio a muitas coisas. Um operador conceitual como o de trabalho, tão central para o estabelecimento do lugar do nosso campo na sociedade, não deve se restringir à sua modalidade lógica pois isso seria uma espécie de distanciamento do cuidado com os nossos pares desfavorecidos em termo de classe. É mais lógico que o operador não seja usado no sentido lógico, mas sim no ético.


É mais ético - e mais lógico - dizer que todos os homens são machistas, pois se trata de manter uma agenda política de erradicação de uma subjetividade violenta. Não adianta dizer que o uso de um universal é intelectualmente desonesto porque não é sobre isso. Se a sociedade é como uma casa, com diversos cômodos, dizer que alguns homens são menos, ou não são machistas, é como dizer que é seguro, para as mulheres, transitar pela sala e pela cozinha, mas não pelo terraço. O foco da discussão deve ser: por quê você quer ser eximido de culpa se permite que tais homens continuem no terraço? Enquanto houver um machista, todos o são, pois é direito de todas as pessoas transitar por toda a casa. E se você discorda, como bom homem, aguente calado, sem choro ou reclamação.


De forma similar, é mais ético, por motivos técnicos (diversas pessoas, ao obterem uma seguridade profissional, podem desenvolver seu estilo clínico e intervir sem a angústia que o lugar do dinheiro tem em uma clínica forçada a ser social), por motivos políticos (o ganho de instituições fomenta a eficácia do semblante aos olhos do público e dá estrutura para pessoas de todas as classes desenvolverem-no campo) e por motivos humanitários (se propor a cuidar dos outros e ignorar o sistema de casta e a condenação a uma lentíssima e, por vezes, impossível, ascensão econômica na clínica não é fazer o oposto de cuidar?), defender que a Psicanálise é uma categoria de trabalho; que é feita por trabalhadores. Psicanálise só não é trabalho para quem goza na vaidade do semblante de quem suporta a angústia de não saber o que fazer e constrói um ambiente quase esotérico de uma prática supostamente pra poucos, dificílima. Não é trabalho para quem não a pratica com o medo constante de ficar sem renda alguma. Medo que influi no aprendizado da técnica e atrapalha a boa ação, o ato, de quem analisa. Novamente: não importa se esta é a experiência de todas as pessoas de classe baixa, importa que notemos porque não há um tempo do holofote dedicado à inclusão desta possibilidade.


A experiência do sentido pode ser diferente daquela da verdade, ou daquela da eticidade (ainda mais a interseccional). Que se reconheçam em um discurso, tudo bem, mas isto não significa que ele contenha a verdade em nível social porque a lógica polissêmica e antitética aplica-se aqui também: se trata, ao mesmo tempo, de grupos menores e maiores. Daí representatividade ser impotente em certos pontos; daí se construir a noção de que há menos chance de alguém que partilhe de certa dimensão discriminatória comigo cometer algum ato de violência, como a sexual, haja vista acontecimentos recentes. Não obstante, a experiência do sentido não deveria ser parâmetro de verdade, apenas de movimento. Sentido é uma tensão que tende ao infinito; é um apontar para uma direção, não para um lugar. É como o que Jean-Luc Nancy diz da escuta. É uma tensão e uma ansiedade. Escutar esse sentido é notar o foracluído de psicanalistas que encontram repouso moral na assunção impotente de certos lugares sociais de suposto reconhecimento das dores alheias. No público geral, ao invés disso, se cristalizou a experiência do sentido que recalca seu direito e efetiva-se mentalmente apenas como seu avesso: sentimos o oposto da ansiedade quando algo faz sentido. Todavia, lembremos: sofisma, retórica, e a própria polissemia, são locus de produção de sentidos. Nem por isso, abrigam verdade.


Daí escorre o gozo da impotência constante desses discursos atualmente. Desembocam em conclusões inconclusivas as quais dizem que é preciso investigar mais; e a efetivação do erro desses discursos no fato de que continuamos a investigar os impasses atuais, desde questões mais satisfeitas com o léxico clínico, como também as tentativas cansadas de leituras do social.


Que o campo seja elitista está em sua estrutura, pois demanda-se certa qualidade de pensamento a qual só é obtida por um ócio duplo: o dos seus pilares mínimos (estudo, análise, supervisão, intervisão) e o da ruminação dessas experiências. E, afinal, tempo é dinheiro. Que os próprios psicanalistas (chamando de "psicanalistas" os que conseguiram alcançar tal qualidade), dispondo de tanto ócio, não tenham percebido isso, diz o quê? Que aquelas estantes de livro que vemos em suas lives, cursos e afins ocupam, na polissemia da palavra "inteligência", apenas um significado: semblante.


A psicanálise é o que ela é para todes incluídes nela, pois ela é inacabada e a ela é impossível significar a mesma coisa duas vezes. E não é nada mais porque não há sinônimos. E mesmo diante desta condição é perfeitamente possível haver formalização, rigor, estrutura, ordem, enfim, chamem do que quiserem. Qualquer outra acepção é discriminatória da polissemia deste termo e pobre na interseccionalidade de sua análise. Interseccionalidade a qual deveria ser condição de existência epistêmica para qualquer discurso que se proponha localizar neste lugar aí - o qual, aparentemente, estamos tendo dificuldade em saber qual é.

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