pas pour moi... ça ne vaut rien
Proponho baboseiras. Tentativas a se riscar no quadro de todas as possibilidades articuláveis dos elementos lacanianos. Afinal, se não falarmos as baboseiras, não escutaremos as babaquices (LACAN, S11, p. 199). Aliás, Guimarães rosa já falara isto há 2 anos, em Primeiras estórias (p. 130): "Antes falar bobagens, que calar besteiras...". Nós, lacanianes, claudicamos com o léxico cujos elementos são dependentes entre si para serem "bem comunicados" (S11, pp. 88-89), e ainda tentamos falar de amor, algo que não cessa de se escrever uma vez que cessa de não se escrever! (S20, p. 199) É muito amor...
Consideremos algumas premissas e conexões privilegiadas entre alguns conceitos de diferentes fases da obra lacaniana para ver aonde chegamos em questões como a transferência amorosa e as realidades do amor. É este o objetivo da reflexão.
Primeiro, alguns dos pontos cardinais em Lacan para uma localização em relação a de onde falo: diferencia-se amor de amar (S8, p. 26). Amor seria, aqui, a estrutura, condição de possibilidade, que prontifica a efetivação dessa ação chamada o amar. Porém em outros momentos amor é uma ação - o que nos permitiria escrever que amor/amar é dar o que não se tem (S8, p. 49). Aqui não seria uma organização ou algo substantivado. Além disso, o amor é considerado, em diversos momentos, como entidade de diferentes pesos epistêmicos (conceito, objeto, fim, processo, etc.): é a transferência (S21, p. 273) e Escritos, p. 848), é um objeto fenomenológico (S19, p. 167), é uma meta do trabalho analítico (S8, p. 26 e, como argumentarei, S11, pp. 254-255), é uma sublimação (S10, p.198) e não duvidaria que houvessem outros valores dados a essa coisa no ideário lacaniano.
Se articulamos tais referências com o que não foi dito, mas apenas meio-dito, ou, ainda, apenas implicado por uma racionalidade simples (a = b e b = c, logo, a = c) já entrevista na junção de certas referências acima, chegamos em algumas definições que balançam esse enrijecimento de fórmulas obscuras em nosso campo em relação a esse tema. Muito ficará de fora. A história da vacilação das línguas em confluências de termos (e.g.: amor = paixão em certos momentos históricos), tipos de amor, bem como o opaco terreno da relação de um eixo fenomênico do amor na confusão entre instância psíquica, modalidades do sentir... (relação com SuperEu, distinção entre humor, paixão, sentimento, afeto, sensação, impressão, etc.) ficará de fora desse minipercurso. Suporei o tema como uma simultaneidade destas coisas.
É um bom início a fórmula "amor é dar o que não se tem" - a qual, aliás, apenas aparece com sua extensão "a quem não quer" no S12 (p. 270). Por mais que não estivesse alheio aos fenômenos que estudou - e, portanto, menções menos numerosas em sua obra podem igualmente indicar importância - aqui o sentido desse aforisma parece apenas ser uma possibilidade presente pelo conjunto de condições histórico-culturais e possibilidades de subjetivação disponíveis ao sujeito, pois não é inevitável que aconteça uma identificação com a falta oferecida pelo amante e o amado, ao perceber que a possui, também, recuse-a. A subjetividade de psicanalista é um exemplo factual de outra possibilidade. Em verdade, Fink, em Lacan on Love estipula outra possibilidade: recebemos de bom grado para perceber o que só nós possuímos que nos faz ser amades (FINK, p. 66). Há ainda inúmeras outras possibilidades, como a possibilidade da demanda de ser amado ao amar (p. 62).
Essa falta que nos é importante, que nos molda (pois nos tem moldado; é a própria estrada da história do desfile metonímico que remonta à primeira falta); essa falta que só damos a pessoas importantes (i.e.: pareiam com nossa tapeação; que são supostas possuírem um saber sobre essa falta e o que fazer com ela, etc.) não só denuncia uma racionalidade fálica (dimensão do ter ou não ter, pois afinal a falta tem de ser positivada para "dar" e "receber" serem modalidades de ação possíveis), como também é diametralmente oposta ao que temos de fato. Se dou a falta não há uma acreção de mim, apesar de poder haver identificação (S10, pp. 131-132, 156). A adição de saber onde faltamos com o outro não é um avanço no que é o amor, porque é sempre um outro, e saber isso em relação ao Outro de nada completa as coisas na medida em que o Outro é incompleto. Avanço seria estar em certa relação com isso.
Por outro lado, se dou o que tenho, ao menos imaginariamente sou mais pervasivo. Se dou o que tenho, isso é festa (S8, p. 435), e não surpreende a imensa popularidade de rolês - que nem por isso excluem a falta. Apenas, dispõem de um time de entorpecentes contra ela. Mas eles têm uma dimensão de possibilidade de avanço também: podem facilitar os ganhos psíquicos de um poliamor que dê a possibilidade estrutural (portanto, não é uma garantia, é uma contingência) de que a alocação múltipla da própria falta a diversas pessoas não seja uma regressão à identificação, mas sim a movimentação à irredutibilidade da incomunicabilidade do amor, o que pode gerar um estado de fome mais maduro. Fica evidente que antagonismos às poligamias são, antes, manifestos de pessoas assustadas com o conforto das próprias limitações. Agora, um interlúdio com a clínica.
Não ficaria surpreso se fosse um subterfúgio de analistas adjetivar o amor de transferencial, incorporá-lo a uma técnica para fugir da mesma angústia que delineia uma linguagem com imagética de tanta estabilidade e ausência de angústia, como "formação" e "tripé". Analistas são tão bobinhes. É bastante estúpido que se faça essa implícita divisão na medida em que:
1) as características da suspensão/adiamento/atipicidade de resposta, de escutar atentamente, de pedir mais fala, é perfeitamente realizável fora do setting. Escutar o outro e usar alguma energia para não transparecer um julgamento é algo que qualquer amigue/par/afins deveria conseguir fazer (se é incomum, são enlaçamentos de uma cultura pobre de relações mais francas, o que não significa impossibilidade ou algo que não seja ético);
2) supor que porque esse afeto "é esperado" ele tem algum grau de realidade diferente do amor fora do setting é absurdo. O que ocorre "fora" é igualmente real/irreal ("O amor é uma realidade." (S9, p. 158)). Lacan chega mesmo a dizer que depende inteiramente da cultura (S10, p. 198). Ou seja, se trata de algo ainda mais radical que a máxima de Rochefoucauld, de que muitos de nós não amariam se não tivéssemos ouvido falar do amor. A cultura é o "ouvir falar de", e isto se estende a qualquer afeto. Que talvez possa existir um substrato independente disto, como a angústia, não diminui a hipótese na medida em que a cultura também é uma ligação com o outro, vide a metáfora do louva-deus no dito seminário. Enfim, a coloração imaginária da coisa não some em nenhum dos dois contextos.
As classificações que matam as anfractuosidades das coisas por seu didatismo ingênuo em nada ajudam. Pensar graus bem definidos (com contiguidade e sem imisção) é detrimental para a própria metodologia que faz uso do grau como expressão do limite dos objetos. Falar, como Fink fala, de transferência positiva, transferência muito positiva, etc., é risível. Se pensarmos que se alguém falar por tempo o suficiente haverá a tentativa de entrega de sua falta, quer se saiba algo sobre isso ou não por qualquer uma das partes; se pensarmos que a fala cria o destinatário, destinatário que constitui o inconsciente (o que não significa equivalência a ele) e denuncia o fio que vem costurando desde o lugar estranho chamado começo, o qual colore o amor até agora fantasiado e visto como obtenível em seu fim, infinitas gradações, permutações, combinações do amor são possíveis.
O amor se dirige ao S.s.S. Porém, em grau maior ou menor, todes a quem falamos estão na função dele. Um resto paranoico eterno: o outro, tornado tal porque falei com ele, sempre pode saber algo que não sei - o que não é o mesmo que saber mais, saber melhor, etc. - Pelo S.s.S. fundamentar a transferência; pela transferência ser uma tapeação em relação à própria falta (S11), tapeação que uma hora cai (e, aqui, cedo: deveras há uma disciplina - que falha também - a qual diferencia aquele que forma o setting analítico, psicanalista, e os outros outros, que bem podem se acomodar pra o resto da vida sem se importar com sair deste lugar de tapeado, pelo conforto narcísico e sintomático de sua própria tapeação); pela fala ser necessariamente uma demanda de amor... enfim, por essas coisais, chegamos a um ponto interessante.
Parece que estamos diante de uma infinita tentativa de terminar o amor; estamos fazendo amor desde sempre - e já que "...os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não pode se fechar" (S11, p. 184), bem que podemos nos foder para sempre! Just fucking with y'all. Falando mais seriamente: esta tradição do amor cortês, feito na fala, de forma imperceptível, voraz e insatisfatória, denuncia também a necessidade de uma distância em relação ao objeto de amor. Não surpreende que, não havendo espaço para a ereção de um discurso, a coisa do homem falhe tanto hoje em dia, quando a distância é tão reduzida por certas formas de relação com qualquer objeto suposto fazer algo com nossa falta (por vezes, só tensão, tesão, paixão, etc.); uma relação de imediatez - na qual, se o objeto se distancia um pouquinho que seja, cria miragem e fusão entre outras coisas e amor.
Supõe-se que há satisfação na carne mais que na palavra. E porque ela é facilmente obtenível, não é preciso ter tanto desejo dela. Sendo possível, a fantasia não é muito potente (porque a possibilidade é possibilidade de morte da fantasia. Aí também a mortalidade nos faz mais apegados a ela). Intensifica-se uma socialização de privilégio à melancolia (sadboys, sadgirls e afins ganham atratividade pelos caminhos dos memes a outros tipos de seriedades), individualidade (nichos, como os low profiles, etc.) e excessiva sensibilidade à alteridade (facilitada pelos algoritmos, é fato), a mensagem se empobrece tanto em qualidade quanto em quantidade, de modo que se pode falar em uma morte do amor cortês, o que não significa que não subsista as dinâmicas do fazer amor. Falando faz-se amor (S19, p. 148), porém esta fala é uma significação vazia (S24, p. 82).
Ainda assim, existe um limiar alcançado ao falar esse vazio, mesmo que se sofra os efeitos psíquicos da verdade do amor enquanto um nome (S10, p. 366), e que delimita a passagem para um outro tipo de saber além deste proposicional (S21, p. 113). Lembremos que a verdade é veiculada pelo gozo para ir de encontro ao saber (Outros Escritos, p. 357). Amar é um acontecimento do gozo subversivo à força imaginária, ainda que, ao mesmo tempo e em parte, tal posição se sustente nela (a = c). Que os sonetos nunca deixem de ser escritos; que se renove a roupagem estética da subjetivação romântica, por exemplo, são manifestações desse incessante movimento as quais, diante do exposto, não surpreendem.
Lembremos, também, a função de facilitar a quem se analisa a amar as coisas de um outro jeito (um regime de investimentos afetivos outro; um outro ritmo de deslizamento metonímico/conjunto de significantes, ou qualquer que seja a referência preferida (S8, p.26). Se trata de modificar a mendicância e fomentar uma fome que sirva de motor para consumir a vida até a morte. Não que isso já não esteja sendo feito. Mas que, pelo menos, se percebe que é nossa boca que nos leva a certos lugares, mesmo quando não percebamos que é assim. Andamos com nossa língua (do mesmo jeito que pensamos com nosso pé) e também há uma Roma do inconsciente, para onde vão os que tem coragem de falar. No S11 há uma ideia pertinente: na análise o sujeito pede algo mas ao mesmo tempo sabe que a satisfação desse pedido é impossível. Há apenas uma organização do que o constitui. Um menu de seus apetites, e não comida (p. 254).
Isso é interessante. Não se trata de matar a fome (de saber, de conhecimento, de reconhecimento, de satisfação, etc.) mas apenas de perlaborar como ela dá o sabor particular à sua vida. O autor explica este ponto a partir de uma história que adaptou: uma pessoa sentindo o cheiro de uma comida pela sua fumaça no restaurante. A fumaça é o significante. Elenquemos quantos cheiros quisermos, não importa: o menu que construímos em análise está em chinês e cremos que a garçonete (nesta história, quem analisa) sabe a que o cheiro pertence e pedimos indicação a ela sobre o que comermos, sobre o que pedirmos. Todavia ir a um restaurante não se resume a comer, mas a experimentar um exotismo no comer (pp. 254-255) (e, portanto, a definição de "restaurante" aqui exclui os lugares a que vamos por já conhecer algo dele. Aí não é restaurante, é mera tentativa de expansão e/ou atualização uterina).
Expandamos isso: é evidente que em algum grau a fome deve ser aplacada para que as funções vitais da pessoa continuem a funcionar (a função terapêutica da coisa; o manejo delimitado por grandes intensidades de sofrimento e questões de ordem que escapam à técnica), mas a análise não se resume a isto e a construção de uma relação com o que nos move além da busca da saciação faz parte dela também. Quer seja por uma via estética, existencial, formal, etc. Há que se constituir um ouvido para o murmúrio incessante da boca do estômago que continuará dizendo que não foi o suficiente. O que ela pede, como ela quer recebê-lo, quando, são seus temperos. O amor estaria nessa fumaça, parcialmente indefinida, que entra pelo nariz mas faz da boca o guia de nossa vida.
Que haja o movimento de valoração superior à carne e não à palavra talvez indique o momento adequado para o amor enquanto uma nova efetivação da pulsão de morte, um movimento de suprassunção entre Eros e Tânatos. Não à toa a hierarquia das pulsões defendida por Freud em Além do princípio do prazer e sustentada por Lacan em sua obra. Podem ter sido entrevistas em seu nascimento histórico. Não à toa a conexão entre o amor e sua condescendência de gozo ao desejo (S10, p. 197), bem como seu movimento sublimativo deste próprio desejo (p. 198). O gozo condescende por saber que não haverá condescendência a um estado de submissão ao desejo. É, antes, o movimento histérico. Como se amar fosse a estrada infinita da confirmação da ausência de consolo humano. Ou não. Sinto que ainda resta um infinito a falar. Não fosse essa paixão pelo inconsciente, estaria a errar (S21, p. 273).
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