A silenciosa rejeição do silêncio
Uma outra pandemia. Uma disseminação irrefletida e irrefreada. Não encontra entrave algum pois seus pressupostos são tomados por postulados e indicativos não só de uma moral imaculada mas da mais adequada posição diante do desenvolvimento da ciência e da práxis. Mas há algo de silencioso o qual, caso continuemos do jeito que estamos indo - isto é, permitindo isto - acionará alguns sinais, não de alerta, mas de condição de emergência. Falo da proliferação de grupos de psicanálises (em acepção ampla: institutos, coletivos, etc., e em diversas abordagens). Mas, ora, mais pontos de origem de discursos, mais críticas, mais desvelamentos de pontos cegos é bom, não?
"Speech is silver, silence is gold". Claro: onde não se escuta que o silêncio pode ser auto infligido com outro propósito que não o de uma estabilização funcional por formação reativa ou seja lá mais o que psicanáticos com seus psicanalismos pensarem, a possibilidade de "silêncio" ser pensado como entendimento ou ocultamento da própria burrice - não ignorância. Burrice - não é considerado enquanto possibilidade. Mas há de se pensar se este nosso movimento é isento de qualquer tipo de comodismo e surdez seletiva à possibilidade de haver a necessidade de nos calarmos. Ficariam es psicanalistas quietes fosse o caso de não ser mais preciso novas construções?
Usando alguns disparadores para reflexão do S17 e do texto de Danny Nobus, intitulado Knowing nothing; staying stupid: elements for a psychoanalytic epistemology talvez se possa padecer da incapacidade de falar algo sobre isso estando fora disso e, ainda assim, ter alguma eficácia. No contexto do discurso do mestre e do universitário, Lacan cria a noção de "o a estudante", desaguando no neologismo astudado o qual significa, em suma, alguém submetido ao imperativo desses discursos, presente de forma pervasiva na sociedade sob a forma de "continua a saber" (NOBUS, p. 99). Acumulamos informação em um certo regime relacional com os elementos constitutivos da atividade teórico-prática.
Relação de saber, não de verdade. Se supõe que há o que saber ad infinitum; que poderemos continuar demonstrando facetas não percebidas, modos mais eficazes de pensar a língua, denúncia de pressupostos implícitos, de mecanismos de controle, etc. Se supõe que isso, ainda que possa não ser cumulativo, não é inútil, pois serve a uma dialética que responde a uma conjuntura delimitada pelos objetivos de sua articulação. Pega bem chegar no rolê a par das criticidades atuais e melhor ainda se cria-se outras. Pega bem levar referências as quais docentes não conheçam. Pega bem trazer rum dado estranho, exótico e curioso e se tornar a pessoa massa para uma conversa. Continuem! Mais! Mas isso é saber, não verdade.
Já havia indícios disso desde o começo. Se a verdade faz furo; se o saber resiste à verdade; se o ensino é a efetivação desse saber, e se, como diz o Nobus, o discursos universitário não diz respeito à instituição, mas à popularização de uma subjetivação que faz do cidadão um estudante (NOBUS, p. 125) - o qual não só é presa da ideologia que bem poderíamos dizer paráfrase do lema nazista e formulá-la por "o estudo te libertará" mas também busca nessa postura de expoente de saber um reconhecimento e prestígio em micro ou macro culturas - alguns questionamentos passam batido: a motivação, a intenção, o método por trás desta postura guarda perigos? É legítimo? Há alternativa melhor?
Em reflexão sobre a liberdade de expressão, levando em consideração as amarras às quais a verdade se prende por conta dos mecanismos psíquicos, para Lacan se trata de ter a verdade como causa, não como objetivo. ter como horizonte descobrir coisas como elas são ou de forma mais útil aos humanos, por exemplo, não valida nada. O contraste, o trauma, o real acessado pela verdade como quebra de realidade é que caracterizariam o ponto de partida legítimo de qualquer possibilidade de método de investigação. Agora outra questão: a verdade é necessariamente boa? É necessariamente algo desejável? Edificante? Isso dispensa argumentação se você leu o seminário aqui usado de referência: não. É ingenuidade pensar de outro modo.
E se atinge-se uma verdade que causa fissura e regressão, movimento retrógrado? Não se enganem: que se tenha falado função "paterna", vindo de uma pessoa que fazia questão de neologizar as coisas não para exatidão mas para denunciar o traço de ambiguidade na comunicação é um exemplo de que honestidade intelectual implica contingência de espaço para retrocesso: conservadorismo, reacionarismo e toda sorte de posições estupidificantes. E se chegar o momento em que for a vez de outros corpos teóricos continuarem a saber e nós não? Será que aprenderiam a virtude do silêncio? Será que sairiam da necessidade de alimentar algoritmos com balbucios e verborragias que só captam idiotas?
"Ah, mas se adotamos uma racionalidade dialética e se trata de uma luta que tem existido e dá indícios de que vai continuar a existir, há uma retroalimentação que garante, ao menos, necessidade de atualização, modificação e criação do saber'. Isso não se nega. Aliás, Lacan previu isso e se defende adiantadamente - como Freud costumava fazer - e logo diz: não pensem que sou contra o avanço. Mas o que está acontecendo não é avanço. É crescente desespero; é apelo às mais monstruosas colagens de corpos teóricos que às vezes são completamente incompatíveis epistemicamente na tentativa de descobrir a operacionalidade de tudo que fere os ideais pelos quais lutamos e perpetuam sofrimentos desnecessários.
O que é sugerido é que a consideração dessa contingência mude a postura que se efetiva como uma espécie de avanço sem cautela e reconheça os pontos que possam já ser verdades não para adotarmos uma complacência e inércia, mas para direcionarmos as energias a outros sentidos. Porque é sempre uma possibilidade que tenhamos "perdido" tempo e chegado a becos sem saída; que tenhamos ingressado na carreira errada, etc. Denegar isso pode gerar consequências para o campo, e se perde de vista os objetivos maiores. Há necessidade de tantos grupos com motivação manifesta de mudanças sociais em escalas diversas? Tais grupos estão atentos a isso? Estão educados para a deficiência do saber?
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