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Foto do escritorMatheus Dias Vasconcelos

Mestre

A subserviência fundada em ignorância


Aceitemos como premissa que existem disputas ideológicas; que elas acontecem em diversos registros da experiência humana e um desses registros é o da impressão, definido aqui como o julgamento à primeira vista, não muito articulado e sem robustez de dados. O objeto de reflexão deste texto visa disputar uma impressão sobre a suposta dificuldade de "entender" Lacan e a cultura que idealiza o mestre expondo uma estrutura relacional de inalcançável. Defendo que as construções de demérito e mérito dos grandes nomes da Psicanálise sofrem de deficiência reflexiva das funções da ideologia: nem tanto demérito pra Freud, nem tanto mérito para Lacan. Mudança de julgamento para os dois.


Tal como as barbaridades Freudianas de supor que uma regularidade estatística é representante direta da natureza, alheio a uma estrutura informacional disposta por efeito ideológico (aqui exemplos diversos: 1) homens seriam predispostos à neurose obsessiva; mulheres, à histeria. Divisão florescida mais uma vez no bojo iluminista da dicotomia razão-paixão; 2) traços físicos típicos de um sexo indicariam a posição do sujeito no Édipo e a posição sexual de sua libido, ou seja, pé grande em mulher significaria homoafetividade, etc.) Lacan também, de forma mais sutil, comete deslizes consideráveis, como por exemplo:


Desde aquela época, sublinhei com firmeza que os fenômenos elementares não são mais elementares que o que está subjacente ao conjunto da construção do delírio. São elementos como o é, em relação a uma planta, a folha em que se poderá ver um certo detalhe do modo como as nervuras se imbricam e se inserem - há alguma coisa de comum a toda planta que se reproduz em certas formas que compõem sua totalidade. Do mesmo modo, estruturas análogas se encontram no nível da composição, da motivação, da tematização do delírio, e do nível do fenômeno elementar. Em outras palavras, é sempre a mesma força estruturante, se é possível assim nos exprimirmos, que está trabalhando no delírio, quer o consideremos em uma de suas partes ou em sua totalidade - O seminário, livo 3, As Psicoses, p. 28, ed. Zahar

A categoria do conjunto, para introduzi-la, obtém nossa concordância, uma vez que evita as implicações da totalidade ou as depura. Mas isso não quer dizer que seus elementos não sejam isolados nem somáveis, pelo menos se buscarmos na noção de conjunto alguma garantia do rigor que ela tem na teoria matemática. 'Que suas próprias partes sejam estruturadas' significará, por conseguinte, que elas mesmas são passíveis de simbolizar todas as relações definíveis para o conjunto, as quais vão bastante para-além de sua distinção e sua reunião, ainda que inaugurais. De fato, os elementos se definem ali pela possibilidade de serem colocados, na função de subconjuntos, como recobrindo uma relação qualquer definida para o conjunto, tendo essa possibilidade como traço essencial o não estar limitada por nenhuma hierarquia natural - Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: "Psicanálise e estrutura da personalidade", in: Escritos, p. 654, ed. Zahar

Há duas coisas em comum nestes trechos: o mal tratamento de uma questão filosoficamente densa: a da parte e do todo ou, vista por outras faces que a questão assume, unidade e pluralidade. Reportem-se ao Parmênides (uso a edição em inglês de James Cooper) e fica clara a covardia do francês em não pagar o preço da aposta, amenizando-a com o "evita ou as depura..." Ou? Não se sabe qual é? Quais dificuldades? Depurá-las seria operar uma espécie de per via de levare de qual(ais) das dificuldades? Qual relação entre parte e todo defendida? Concordante com qual das perspectivas parmenidianas? A que a parte tem o todo e vice-versa? As entidades de "unidade", "Um", "harmonia" e "coesão", por exemplo, dificultam considerar que dada uma "depuração" as coisas continuem as mesmas. De modo similar, defender um mesmo nível de idiossincrasia de entidades em níveis distintos, como faz no S3, revela a mesma ignorância. Cito Platão como crítica imanente, na medida em que o próprio Lacan diz:


Está muito em moda em nossos dias 'superar' os filósofos clássicos. Eu poderia igualmente ter partido do admirável diálogo com Parmênides. Pois nem Sócrates, nem Descartes, nem Marx nem Freud podem ser superados', na medida em que conduziram suas investigações com essa paixão de desvelar que tem um objeto: a verdade. - Formulações sobre a causalidade Psíquica, in: Escritos, p. 194, ed. Zahar

O que é problemático. Primeiro que se defendemos que somos racistas há a pressuposição de uma efetividade estrutural que está além da capacidade crítica emancipatória. Ferramentas de dominação têm mantido uma articulação dominatória sub-categorial do aprés-coup que é o atraso, gerando trauma, solapamento da criatividade ou qualquer mecanismo que impeça uma ultrapassagem de poder persuasivo no discurso que disputa hegemonia com o(s) discurso(s) hegemônicos. Ou seja, Freud tem culpa, sim, mas é compreensível a ignorância de certas facetas de sua realidade, o que não é demérito parra a sua pessoa e é mérito para o campo do qual fundou a organização.


Lacan, por outro lado, merece menos idolatria do que recebe. Teve como professora particular Bárbara Cassin. Uma das pessoas mais competentes no mundo em se tratando dos antigos e da temática da sofística. Isso indica o grau de qualidade dos recursos dos quais dispunha o autor. Lendo a obra dela sobre Lacan, ou então O efeito sofístico, fica claro, todavia, a incapacidade de clareza do autor francês pela discrepância do cuidado na transmissão nítida, referenciação, modos muito menos ambíguos de tratar assuntos tão difíceis... "O homem é o estilo", claro, desde que a verdade desta frase seja admitida como existindo apenas enquanto atrelada ao narcisismo do tal estilo. Encore: o altar erigido para ele como inatingível falha em reconhecer justamente como o inatingível ganha existência e eficácia estando a nosso lado e mostrando-se mundano. O exemplo da figura histórica de Jesus por Zizek em O sujeito incômodo para falar de uma noção de universal é exemplar. Em nível não-material, Lacan não é inalcançável. Ninguém o é.


A relação com o mestre onde se pensa que a única forma de respeitá-lo, amá-lo ou demonstrar algum afeto de bem-querer sejam as únicas formas elogiosas de lidar com ele é falha. Admitindo uma dimensão dialética mesmo que negando o predicado de "hegeliano", há indícios de que o próprio autor sabia disso, estimulando sua audiência em outras formas de didatismo. Como Zaratustra diz: se quereis me elogiar, supere-me. A petrificação da imagem de um ídolo intelectual serve a uma romantização do que constitui a imagem de seu intelecto para os outros, o que pode servir politicamente para a manutenção de prestígio de indivíduos e/ou instituições, desviando-se, assim, de diversas outras coisas que podem ser muito mais importantes. A pressa em defender que ideias têm, como inerentes, um grau de dificuldade não é uma perspectiva que assuma a intersubjetividade, o zeitgeist, ou que tampouco decomponha analiticamente processos como os de compreensão, explicação, elaboração e criação.


Apenas perpetua-se a sagacidade psicanalítica - que não nasceu com Lacan - quando se sustenta, em relação a um discurso que por sua natureza preza pela polissemia, que o sentido o qual o nivela para maior prestígio social foi imprimido ali por intenção de quem o proferiu, ignorando-se como o edifício conceitual lacaniano pode promover uma autofagia: sentido não é propriedade, e não está no autor nem no intérprete, na medida em que o sentido enquanto tensão, continuidade de elaboração, não é delimitado. Ambos os autores, em devidos quesitos, merecem elogios e críticas mas a relação a partir da qual se constrói, comunica e subjetiva-se tais juízos tem sido prejudicial para qualquer psicanálise que busque uma revigoração do campo e potencialização de capacidade crítica. Nesse sentido, pensar um tempo de retomada de etiologias, de audácia criativa e novos aportes que não se esquivem de reconhecer a incompletude em sentido de impotência também é visado ao trazer tais dados.


Fatores extrínsecos ao texto caracterizam sua dificuldade. Não essencializem uma suposta insuperabilidade autoral. O Lacan difícil e fetichizado é bem-visto pelas psicanálises reacionárias! Byyyyye!




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