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Foto do escritorMatheus Dias Vasconcelos

Indicações

Ou a persistência da insensibilidade sectária


A denúncia histórica de Roudinesco acerca do sectarismo na psicanálise em certo sentido continua atual e demandando uma atualização de leitura para que o percebamos. Hoje ele revela-se por intermédio de uma postura de moralidade-antítese às declarações "éticas" de democratização da práxis psicanalítica. Tal sectarismo efetua-se sob modos silenciosos mas, nem por isso, inertes. Comunga-se das formas de denegar os contrapontos a um sistema de valores que cria pobres justificativas para que se indique a pessoa x e não a y - ou ninguém. Além disso, confunde-se atenuantes com indulgência e solapa-se a possibilidade crítica de reavaliação de profissionais que temos em alta conta. Destrinchemos o argumento.


Assim como Feyerabend - ao defender a ausência de método, no singular, como corolário da não-existência de uma única ciência, uma única validade - argumenta que aquilo que ganha valor de tese, postulado, intuição (enfim: categorias intelectivas persuasivas, às quais devem-se a um desvio sofístico de sua construção) não necessariamente concorda com o estado de coisas atual. Pode, muito provavelmente, apenas concordar com o já produzido. É como se a corroboração fosse, em si, um argumento para o psíquico; a repetição, seu grau de validade e realidade. Assim também acontece com as cristalizações que fazemos de nossos pares ao pô-los em circulação por nossa indicação.


Parece, mesmo, que não se cogita com muita frequência algo do tipo: "certo, essa pessoa demonstrou competência e 'evidências' de seu percurso analítico. Mas os frutos que colheu não apodrecem? Devo nunca mais pô-la à prova em minha estima dela? Por que ela foi boa ontem deve, necessariamente, ser boa hoje?" Quer dizer, adota-se uma postura indutiva que confunde constância de boas impressões sobre esse outro no passado até o momento, com o traço irredutível de contingência do agora para o adiante. Recorrentemente bato na tecla: reportem-se, em Lacan, à imagética da passagem para a posição de analista como sendo deixar uma porta entreaberta, que deixa um resto, que fala de crença: o que impede que seja impossível que se volte na porta e que se deixe de crer? Indicação boa ontem pode ser péssima hoje.


Para além disso, evidencia-se uma aufheben entre a camaradagem enquanto subjetivação política e a vontade de potência enquanto retomada do fato de que nos inscrevemos em uma ontologia valorativa que abarca a possibilidade de termos funcionamentos com princípios opostos aos que proclamamos ter - isso é velho, óbvio, e talvez por isso mesmo, esquecido e presente. Uma conveniência no uso da régua de "primeiro eu" é uma das cores usadas no canvas de argumentos do tipo: as condições socioeconômicas concretas, a necessidade de pensar uma das dimensões da psicanálise enquanto profissão com a insegurança por ser autônome me autorizam a determinar, sozinhe, onde é o adequado e onde não é em termos de usufruir do poder da rede de profissionais que permuta e angaria pacientes entre si.


Quer dizer, eu é quem decido se ter 30 pacientes é mais imprescindível e deve acontecer primeiro que indicar uma pessoa que julgo competente e está em necessidades financeiras, sem pacientes. Isso porque preciso de um solo amplo que diminua a insegurança e afaste sofrimento psíquico advindo dela para bem escutar. Pergunta: se se defende uma qualidade de pensamento onde referenciais sejam formalizados para que se haja uma discussão mais rigorosa e nítida, essa defesa se alastrará a uma discussão pública, se não dos valores, da racionalidade conveniente por trás deles? Por trás das decisões de creditação aos pares (i.e.: falar sobre seu trabalho, indicá-los/as, etc.)? E qual conjunto de valores é tido em maior respeito em determinados círculos?


Nossas motivações são preocupadas com o tipo de procedimento psicanalítico em relação às demandas das pessoas que chegam a nós? Se deixa levar pelos vieses de dinâmicas grupais? Qual a minha relação com quem indico? Para além das questões acerca dessa racionalidade, não deixa de ser notável a confusão - de novo, conveniente - entre atenuadores conjunturais e indulgência total. Aqui se resgata a noção de mérito em escala individual reclamando o saber da vivência como métrica: "estudei e sofri muito, logo, mereço ter n pacientes. Culpa não é mais que um operador de controle social fetichizado pela moral judaico-cristã". Ora, mas então explicite ser nietzscheane e/ou querer o prestígio cada vez mais percebido do predicado de camarada. Essa conveniência parece maquiagem do querer mais, potência, poder, roupagem nova de algo velho.


De fato, em Genealogia da Moral pode-se construir uma leitura a qual defenda uma ontologia que tem como entidade fundamental o valor e não o ser. Ou, ao menos, sendo o valor um traço irredutível do ser. Não surpreende o interesse de Heidegger por Nietzsche nem o adiantamento em afirmar categoricamente que as modalidades própria e imprópria do ser-aí não devem nem têm atribuição valorativa. Não surpreende que a situacionalidade de usar um operador contínuo, em grau, e não discreto, em estados bem delimitados, seja uma faca de dois gumes: os elementos que agem como motivadores, formadores das decisões sobre instituição de redes profissionais por indicação (sofrimento, dores, recompensas, competências, etc.) são vistos apenas em sua faceta de incomparável.


Ao mesmo tempo - e do mesmo modo que Lacan repetidamente não soube lidar com a questão da parte e do todo em sua obra, demonstrando que o todo-poderoso autor francês tem partes filosóficas deficitárias - não parece ter sido resolvido (ou se é passível de resolução) a faceta da objetivação desses elementos subjetivados. Vai se defender que não existe uma experiência tipológica nas fenomenologias de sofrer por não ter tal ou qual roupa e por fome? Vai se negar, a priori, que é impossível comparar? Que podem ser sentidos em intensidade e que se manifestam com intensidade podem ser dois caminhos de reflexão distintos, por exemplo.


Haveriam muitos outros pontos por analisar. Apenas, é interessante notar como se diz: indico x não porque é mais próximo, nem porque tenho mais intimidade com ele, mas porque conheço sua clínica. Ao mesmo tempo se sustenta e tem-se a experiência da intransmissibilidade dos momentos clínicos em discussão com pares, supervisão, etc. Sem falar que não se sabe, nunca, se tal paciente se dará bem com tal pessoa. Ou seja, é uma aposta. E seria sensível pensar porque certas pessoas apostam sempre do mesmo jeito. Devem estar ganhando alguma coisa, não? Tudo isso é - ou deveria ser - óbvio. Provoquemo-nos: um motivo para o velho e o óbvio perderem nossa consideração é que com a realidade - e até com o real - acostuma-se; com a verdade, não (LACAN).




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