Em dimensão epistêmica, o que falo tem grau de impressão: se, por um lado, já é aceito que não se deve fazer propaganda da própria escuta, por outro, se expõe uma constância de caracteres facilmente admiráveis e aptos a serem percebidos como indicativos de um bom serviço: firmeza quanto a um aspecto da técnica; astúcia na percepção de um detalhe não notado que gera na/o profissional um post crítico; a sensibilidade e vulnerabilidade expostas em linguajar poético a respeito das anfractuosidades das relações humanas as quais parecem mostrar que técnica e manejo têm incompletudes... a lista segue.
É curioso que essa maneira de se portar nnão só é pervasiva e constante mas também não é única de nosso campo: traveste a continuação, mutatis mutandis, de uma lógica de vitrine profissional - agora em versão não-tão-deluxe e não-tão-limitada de psicanalistas! Nos vendemos da mesma forma que profissionais de outras orientações pretensamente devotas ao cuidado. Apenas, o fazemos indiretamente - será fruto de estarmos acostumades a um tipo de pesquisa em que o objeto é elusivo e indireto também?
Seria essa dinâmica discursiva o equivalente profissional à moda instagramnesca de só postar as partes boas de nossas vidas? Devo estar alienado mas não tenho visto a admissão de erros de manejo, de angústias, de episódios de extenuação de escuta, de incongruências e sem-explicações parra o fato de que onde sabemos o abc falta, às vezes, aquilo que faz o processo andar. "Ah, não cabe falar desse tipo de coisa publicamente." Por quê? Serrei muito afortunado e estarei rodeado só de parres incríveis e sensates? Quisera eu que me ensinassem como ser assim. Mas vou assumir, apenas por suposição, que não é este o caso. Por que seria esse o caso, então?
Afinal, temos aqui dois pontos importantes: 1) ora, a ideologia é eficaz na cristalização de certas imagens. Não precisamos mostrar apenas tal ou qual semblante; não precisamos esbanjar o tamanho de nosso falo intelectual com nossas declarações do quanto lemos e estudamos, e participamos do que acontece no campo, etc. etc.: o analisante é que nos põe no lugar de S.s.S., não? E isso é potencializado pelo apreço acrítico a profissionais, certo? Por que, então, essa postura? A lacanagem está sendo traduzida parra diálogo com público? Tememos o que chamam de "validade aparente" na psicometria? Estamos competindo? Mas, então, 2) não falta gente sofrendo e precisando de ajuda hoje em dia, sim? É o que costumam dizer.
Curioso que, se decido manter a suposição de que nem todes com quem tenho contato ou veja a atividade nas redes são absolutamente competentes, um dado de minha experiência faz mais sentido: ganho simbólico, e não concreto: não falta paciente, mas as indicações que fazem e as pessoas que chegam a mim vêm de outras pessoas que não as de meu campo. Essas dão-me "apenas" elogios. Tem parecido cada vez mais que nem o predicado de analista, dessas pessoas que elogiam, deveria se aceitar. Que nos conformemos com o de "estúpido", mesmo.
Seriedades à parte, é importante resgatarmos o valor da estupidez. Ela não é ausência de conhecimento, mas uma modalidade disruptiva dele. Uma articulação com temporalidade de kairós que funda efeito na existência de um conhecimento cristalizado e estático - tal como toda a tradição epistemológica canônica e vertentes contemporâneas defendem.
"Estupidez é uma modalidade de conhecimento que evacua as relações intersubjetivas as quais estruturam o campo epistêmico" (Danny Nobus & Malcolm Quinn, in: Knowing nothing, Staying stupid - Elements for a psychoanalytic Epistemology, ed. Routledge, 2005, p. 5 (trad. livre))
Não é possível falar de acertos e erros sem exposição? Tentemos: às vezes, não sei o que estou fazendo na clínica. Independe da troca com pares, supervisão, análise, estudos, e seja lá mais o que considerarem formativo. E não me interessa se isto de imprevisível que insiste vai se manter aí ou não. Tampouco posso prometer que, pelo menos, terei sempre a postura de buscar me reaver com o que, a posteriori, se mostrou erro no manejo ou, no momento, angústia em mim. Não posso garantir afetos. E se você me lê do ponto de vista de analisante, sinto muito: sou incontestavelmente passível de falha. De fato, foi muito difícil articular essa frase acima. Se não fosse tão lido a ponto de ter passado pelo apreço de beletristas como Lispector ou Proust, não conseguiria. Exporia quem escuto!
"Hur dur eu li 144 textos esse ano, totalizando 13.038 páginas; me preocupo com a ética e também vou a eventos e discuto com pares, etc. etc."
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