Condições de exclusão a psicanalistas iniciantes
Considerar possíveis caminhos que o campo psicanalítico poderá tomar em futuro próximo pode ser indicativo de seu estado atual nas suas possibilidades de efetivação na pólis e pelos indivíduos que reproduzem o discurso que se articula nesse exame. Isso por revelar a largura de capacidades como a imaginativa e das implicações de suas premissas. Disputar imaginações, cujas delineações são parcialmente determinadas pelas tentativas de hipostasia de um semblante de Real no que há de concreto hoje é uma forma de modificar o quanto conseguimos visualizar sobre o amanhã da situação da Psicanálise.
O tutano do argumento não é difícil: considerando que a sensibilização quanto às diferenças socioeconômica privilegie certos afetos nas relações sociais, as condições de ascensão financeira de psicanalistas iniciantes ficarão mais difíceis e isso pode causar um tolhimento do campo pela subtração de muitas amentes potentes em função da demanda de um rendimento maior. Em certas dimensões, pode ser válido desejar o fim de nosso ofício. Se uma organização social não-opressiva se efetiva, talvez seja muito menos necessária a atividade da escuta nos moldes técnicos de hoje. O que pode ser bom. Não obstante, não é só nesse cenário, ou no da vitória ideológica de lógicas cientificistas/normalizadoras, que a Psicanálise é menos presente. Um agravamento persistente das diferenças econômicas já pode ser o suficiente.
Tal sensibilização não se restringe à dinâmica de apreensão conceitual que configura o aparato intelectual de nosso zeitgeist, com o qual construímos nossas cosmovisões. É também um "obrigar a se dar conta" dessas diferenças, pelo "trazer à obviedade" cada vez mais escancarado de micro violências cotidianas que denunciam o que chamaria de "insensibilidade unívoca": a conscientização apenas das perdas da própria posição em relação a uma posição superior. Não se considera aquele que não consegue mais comprar carne, apenas se considera que não se consegue mais comprar o carro deste ano, ao passo que a classe de cima consegue e não percebe que sofro por não consegui-lo. Isto assume valor epistêmico de postulado neste texto também por motivos estratégicos.
Em função da imediaticidade e determinidade desse outro há pelo menos um objeto de desprezo sobre o qual dar um pouco de vazão a uma frustração bem delineada politicamente - e impedir que vire ódio efetivo. Como Sloterdijk diz: hoje não há intersubjetividade, há interobjetividade. É o paroxismo de Protágoras: as coisas das quais eu sou a medida incluem, agora, todos os outros. "Eu sei se sou pobre ou não, não você, sr. outro". Parcelas de legitimidade, no sentido de verdade psíquica do sofrimento que se alega diante do outro que não percebe do que fui privado pode existir, evidentemente. Porém existe para todes. E isso reverbera em uma socialização onde vai se tornando cada vez mais difícil, ainda que não se odeie esse outro insensível, comungar doso circuitos sociais dele caso seja de classe econômica distinta.
Didatismo teórico é foraclusão de um aspecto fundamental da realidade linguajeira do código: sua anfractuosidade para abarcar a existência em modalidade de nuances e não apenas de valores discretos: não existe apenas um tipo de rico, um de classe média e um de pobre. Pragmatismo à custa de um outro ileso é perversão experimental.
Além disso, o domínio sobre o vocabulário dos aparatos de dominação da classe trabalhadora na forma de uma pluralidade de maneiras de transmiti-los facilita leituras sociais das evidências do aqui discutido. Em um evento aqui em Recife, após uma mulher negra falar sobre o comum de certos significantes para o que é a vida de corpos como o dela no campo psicanalítico, um dos organizadores responde, enternecido (com a largura de ternura que sua condição o permitia): "queremos simpatizar mas é até difícil imaginar outra vida que não a que eu levo" (paráfrase; mesmo sentido). Óbvio: as condições de criação de imagens (o imaginar) depende da capacidade de exame dos elementos de nosso tempo. Quanto menos se considera que tais elementos são decomponíveis e possuem muito mais facetas, o todo é tomado por algo mais simples do que é, e o número de cenários imagináveis reduz drasticamente. Como resultado das duas premissas até agora: pessoas de mesma classe econômica fechar-se-ão em suas comunidades; contatos "interclasse" ficarão mais raros.
O que isso significa para a clínica? Um monolítico de intervalo financeiro estreito e estático. A depender, por exemplo, da faixa etária da/o analista (pois ela fala de um momento mais fácil ou mais difícil de congelamento em alguma classe econômica), e uma dificuldade crescente para conseguir uma variabilidade, de baixo pra cima, na renda recebida por analistas iniciando no campo. Isso, claro, a menos que contorçam a própria ética, pela legitimidade da auto validação de contrabalanço do próprio sofrimento, e optem por posicionar-se subalternamente ao congregado de velhes que faz uma acumulação antiética de todas as pessoas com condições econômicas para usufruir de uma análise recompensando de forma monetária mais justa a/o profissional. Assim talvez consigam pacientes que paguem melhor. Se se depende do boca-a-boca, analisantes tenderão a chamar analisantes de mesma classe e qualquer perspectiva de ascensão econômica se tornará mais e mais hercúlea. Isso e o progressivo desconhecimento de um uso efetivo da internet e o confinamento algorítmico, além das condições de vida que nos obrigam a optar pelo conveniente e não pelo melhor, fazendo pesquisas rápidas e sem cuidado, contribuem para que não haja muita possibilidade de procura de profissionais que não sejam de certas áreas cibernéticas ou geográficas.
Articular uma frente política de desmantelamento, demonstrando inépcia intelectual e técnica, posicionamentos apodrecidos de estagnação política e consequente resignação de violência econômica desses de cima é fundamental. Mais trabalhos como o A clínica Psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento e outros como Clínica Psicanalítica na Rua estão surgindo e continuarão a surgir enquanto tomarmos como nosso dever (de anjes elitistas) colocar ban-aids em estradas fissuradas por terremotos assombrosos da ganância burguesa e sua relação de insatisfação com o dinheiro ainda a ter. Não surgirão por interesse científico ou genuína curiosidade, portanto. Se nosso campo traz a peste, e levamos nosso campo, não estamos limpes.
A parcela de legitimidade das pautas identitárias age como o próprio recalque e seus agentes não percebem como tais pautas são facilmente assimiláveis. Recebem reconhecimento simbólico, "se salvam", e no entanto os números de analistas mal recompensados continua a crescer. Em termos de conteúdo, as sessões se povoam de momentos de queixas em relação às quais o aparato técnico do cânone psicanalítico é absolutamente limitado e já havemos de nos desdobrar em um alocamento de outras funções para esse espaço. Se reclamam do trabalho; do quanto têm de abdicar para ter tão pouco, o que vocês, analistas, respondem? Com que frequência se desvia de modalidades processuais tipo o deslocamento metonímico para um espaço dedicado apenas à vazão? A frequência disso, por que acham que cresceu?
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