Disputas atuais na formação em Psicanálise
Mal inspirado estaria quem emitisse a suspeita de estarmos afirmando que a formação dos analistas é o que a psicanálise tem de mais defensável a apresentar. Pois essa insolência, se existisse, não concerniria aos psicanalistas. Concerniria, antes, a alguma falha a corrigir na civilização, mas que ainda não está suficientemente cingida para que alguém possa gabar-se de se encarregar disso. (Lacan, in: Escritos, "Do sujeito enfim em questão", p. 231, ed. Zahar)
No atual debate sobre a questão da formação, observa-se um momento dialético interessante para uma perspectiva crítica da Psicanálise.
De um lado, temos as mesmas partes (certos campos, fóruns, pretensas instituições, grupos em geral) e lógicas discursivas defendendo que não sejam implementadas novas propostas que vêm surgindo, notadamente no ambiente (pseudo)universitário, de formação em psicanálise. Não é incomum que se estenda tal crítica a propostas que visam apenas aproximar-se da idiossincrasia epistêmica da Psicanálise para analisar o que surge do contato desta com outras áreas. Por exemplo, a Filosofia.
Que seja criticado que uma empresa produtora de diplomas - em geral de baixa qualidade (com a licença, chamarei a privatização da educação do que ela é) -, se proponha a oferecer, com promessas e critérios determinados a priori, o necessário e suficiente para que alguém seja psicanalista é perfeitamente legítimo. Todavia se faz desta legitimidade um impulso para críticas menos consistentes em propostas outras, como um curso de outra área que se proponha a ver o que o ideário lacaniano pode oferecer a seu campo.
...nenhum ensino fala do que é a psicanálise. Em outros lugares, e de maneira declarada, cuida-se apenas de que ela seja conforme. Existe uma solidariedade entre a pane ou os desvios mostrados pela psicanálise e a hierarquia que nela impera - e que designamos, com benevolência, como hão de reconhecer, como a de uma cooptação de doutos. A razão disso é que tal cooptação promove o retorno a um status de imponência, conjugando a pregnância narcísica com a astúcia competitiva. (...) Remediar isso, entre nós, deve ser feito pela constatação da falha que registro, longe de pensar em encobri-la. Mas para colher nessa falha a articulação que falta. (Lacan, in: Outros Escritos, "Proposição de 9 de outubro de 1967", pp. 250-251, ed. Zahar)
Usa-se de uma legitimidade para forçar uma ilegitimidade tal como se potencializa uma mentira contando uma verdade - parcial, como toda verdade é.
Situação que gera a necessidade de uma tomada de posição: a cooptação de doutos não pode continuar na medida em que ela, por sua vez, também não possui argumento que fique de pé quanto à formação. Em verdade a lógica que define a Psicanálise a partir de sua noção de discurso (seu discurso é o que causa fissura) não deveria ver problema em se deixar ir a um lugar onde pode efetivar tal efeito, até porque é ingênuo quem pensa que é menos frágil a lógica da teoria dos discursos.
O espírito do tempo do discurso universitário no tempo de grandes nomes era um; hoje é outro. Estrutura fala de estabilidade, não de imutabilidade. Por outro lado, deve-se recusar qualquer proposta que use o insidioso mecanismo de aceitação tácita do predicado de psicanalista ao trocar "formação" por "certificado".
O que resta, então? Pensar uma anarquia formativa não significa caos e destruição. Se usarmos a palavra no sentido de ausência de hierarquia dos elementos iniciais da reflexão talvez consigamos extrair algo daí. O que não dá é se manter na postura que desloca a sensação narcísica de unicidade da "margem" doso saberes humanos e participante de um lugar ímpar, criador de fascínio, sem que se perceba isso porque se admite "vá lá, aceito que sou castrado e que tenho diversos probleminhas". É evidente que estas ideias deixam implicitamente clara minha posição quanto ao tripé: passamos a batata quente da angústia para o paciente e supostamente nos sentamos em um lugar absolutamente estável? Não. O banco é manco; esse tamborete está balançando há algum tempo e os insucessos históricos e titubeios contemporâneos demonstram-no.
Não faltam passagens de Lacan onde se inclui sempre um elemento de incompletude na formação; de fé, de aceitação de que há a possibilidade de que eu não seja, de todo, ou sempre, analista; e, ainda, de uma modalidade temporal que nnão ontologiza tal predicado e desvirtua a importância dessa questão no âmbito de discussão com pares.
Pensar que estamos sempre em um gerúndio, e nunca num particípio; pensar que se trata sempre de uma possibilidade de volta (pois se é questão de acreditar que sou analista, se eu me tornar cético no futuro, deixaria de ser, não? São alternativas. Mas suponho que nnão seja um argumento lucrativo para quem quer engessar uma estrutura de trabalho onde tenhamos que ter nossos títulos rapidamente.
Parece-me que atualmente o desenvolvimento de nosso campo ainda não ultrapassou uma espécie de impossibilidade estrutural: qualquer percurso porta probabilidade, não garantia de psicanalista. Independe, em certa medida, da competência da própria analista ou supervisora, da troca com colegas, dos estudos, da clínica. Tudo isso soa, no momento, como condição necessária mas não suficiente. E se este estado de coisas nos angustia: qual o problema? Não é este um afeto fundamental, sempre aí?
Daí que, em determinada fala de uma jornada profissional, pensei que uma forma menos ruim de frasear o adjetivo "Psicanalista" seria: uma tentativa estruturalmente impossível de operar ao estimular e aguardar a recorrente evanescência do ato analítico onde se desvela a função de sua práxis. Restando um resto. Saber desse resto não deveria ser a "articulação que falta" - não surpreende que em textos como "ato de fundação" isso se ponha para baixo do tapete -, mas sim a falta de articulação, e uma perene preocupação com isso que sempre insiste. Afinal, é sobre isso.
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