Elitistas
Falemos um pouco de cultura e das determinações que se sobrepõem a qualquer tentativa de autodeterminação imanente de um campo por seus agentes e produções. A ideia a ser provocada aqui é simples: as qualidades de um campo têm sua intensidade alterada em função das articulações culturais da conjuntura em que se encontra. Se o campo psicanalítica fora mais acessível em um background de herança cultural que oferecia privilégio ao consumo de conteúdo pertinente à educação psicanalítica no tempo e na Viena de Freud ou na Paris de Lacan, hoje já não é assim. Hoje o campo é elitista a despeito de seus agentes e de suas tentativas mesquinhas de mascarar tal fato.
É notória a mudança, com a globalização e a revolução tecnológica da década de 90, que o regime consumista audiovisual passou a dar prioridade ao que não tem como efetivação explícita e literal de seu conteúdo o texto. As modalidades de introjeção informacional estão em um movimento progressivo de pender para imagens e sons nos tempos atuais. Considerarei isto um postulado por sua pervasividade e representatividade enquanto manifestação da maioria das culturas existentes (não passa despercebido os casos de tribos e microculturas que não funcionam assim, mas tais casos não geram impacto suficiente para modificar o funcionamento capitalista tardio. Por isso, não serão incluídos na reflexão).
Ou seja, ao passo que os aparatos das políticas públicas de entretenimento tinham um escopo de possibilidades reduzidas, materiais como livros e revistas técnicas tinham um outro lugar e valor no cotidiano de sociedades. Era comum na França de Beauvoir que livros recém lançados estivessem na boca do povo em menos de uma semana. Isso não caracterizava uma pessoa como "leitora voraz" ou não pressuporia uma subjetividade que necessariamente sacrificaria outras coisas, em outras facetas da vida. Por outro lado, caso se queira deter-se em um cânone literário de certo movimento hoje em dia, é preciso sacrifícios - a menos, é claro, que se tenha privilégios.
Por exemplo: se esta aberração cultural que é o booktuber diz que é uma forma de protesto e contracultura na guerra cultural ousar ler calhamaços e se permitir o seu consumo de forma lenta, parece que se esquece que a palavra "carreira" tem sua verdade efetivada em nível de literalidade, também. Precisamos correr para ter o mínimo. Só é permitida a fruição de Em busca do tempo perdido a quem tem recursos materiais o suficiente e uma bolha isolante eficaz o suficiente para que sua herança cultural seja uma de intelectualidade ruminante, e não líquida. Mas e na Psicanálise?
Algumas premissas: considerarei que, para além de meu referencial lacaniano, é posto como um pressuposto, na maioria das abordagens que têm alguma chance de disputar o semblante, a front page, do campo e representar o que é "Psicanálise" no imaginário social, que é fundamental um investimento intelectual na formação de psicanalistas. Mesmo os ditos pilares da análise e da supervisão têm este traço na medida em que o atravessamento enquanto uma das finalidades do processo influi na dinâmica de fenômenos ali incentivada. Pra além disso, vide as exortações de Freud, de Lacan, de Dolto, etc., para estudarmos outras áreas além da clínica.
Estejamos "à altura de nosso tempo". Parece que ninguém chega a ousar pensar que alcançar tal altura pode ser uma meta liberal, inalcançável para a maioria, ilusória e sedutora de uma imagem intelectual para a classe trabalhadora inscrita na Psicanálise. O que é isso, aliás? Particularmente, parece que se eu souber qual é a altura de meu tempo é porque terei tido um montante gigantesco de recursos para vislumbrar algo assim. Estar à altura do meu tempo é apenas saber como opera o neoliberalismo? (e não veem como isso é profundamente iluminista?) Isso muda o quê? Saber desmantelá-lo é estar à altura do meu tempo? Saber provocar afetos? Propor planos para o futuro? Prever dinâmicas psíquicas?
Se concordam com a ideia de que uma carga cavalar de estudos é condição de necessidade para a práxis psicanalítica, há de se convir que para que isso seja seguido à risca é preciso tempo e uma disposição de investimentos para o objeto a saber. O que pressupõe uma educação particular e um cotidiano não atravessado pela imediaticidade típica da maioria da população. Claro, aqui há ainda espaço para uma sofística da modalidade: há formas e formas de se considerar o que é essa "carga cavalar de estudos". Cada um(a) tem sua régua. Claro! Mas prefiro a frase: cada um tem sua conveniência. Porque se não há proposta de formação na psicanálise - o que defendo - o que podemos propor é um contínuo desconforto com essa insuficiência - e refletir mais. "Reflexão" aqui englobando consumo da literatura técnica bem como elaboração do processo de análise e supervisão de forma conjuntiva a este consumo.
Onde isto nos põe? É uma consequência lógica inescapável que, no atual momento, o campo é elitista. A despeito de tentativas individuais e/ou grupais. Não se trata de conseguir o pdf de um texto que na Amazon nos aparece por 900,00 R$, nem de incluir outras faixas de preço em eventos. Cotas, instituições abertas, nada disso suplanta a aceitação de que é necessário um cotidiano de leitura, atendimentos e supervisão/intervisão, o qual, no fim das contas, é para poucos. Mais, ainda: se este critério for posto como o principal, há pouquíssimes psicanalistas.
Somos de um campo elitista. Não me venham com as noções imbecilizadas de aproximar a psicanálise da população. A população estará próxima da psicanálise em uma proximidade para além do reconhecimento do benefício da escuta, quando a cultura for propícia a isso. E, tal como qualquer vislumbre de passagem de regime socioeconômico que idealizamos a partir das leituras socialistas e comunistas, se isto for acontecer na psicanálise, decerto não será na nossa geração. Podemos nos confortar, de algum modo, e pensar que o trabalho atual pode servir de semente para algo futuro - assumindo que as coisas continuem aqui; que o aquecimento global não encontre seu ponto fatídico e que aquele relógio que marca 6 anos para algo irrevogável não esteja certo. Que escutemos mais é posto em dúvida se não estudamos. Que estudemos: isso acontece?
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