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Foto do escritorMatheus Dias Vasconcelos

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(É indicado que se leia este post com a música 4'33", de John Cage, ao fundo). Há uma oportunidade interpretativa pouco usual sobre a temática do silêncio na obra On Silence - Holding the voice hostage, de Ed Pluth e Cindy Zeiher, livro da coleção Lacan Palgrave Series, infelizmente ainda não traduzida. Em si, o trabalho é ordinário, com breves feixes de novidades. Não obstante, este texto pode servir como facilitador de algumas reconsiderações sobre como o assunto é tratado no campo lacaniano. Se tem sido comum uma preocupação típica da transcendentalidade do semblante de analista com seu silêncio instrumentalizado, e apenas se considera o sentido do silêncio do lado de analisantes - e o que podemos fazer com ele - aqui temos outra questão.


Há que escavar o texto. É muito brevemente que aparece a oportunidade, não de analisar, mais uma vez, funções e lugares estruturais do silêncio estratégico manifesto no setting, mas sim de se considerar o silêncio inscrito aos processos psíquicos de quem psicanalisa. O que acontece e quais as implicações da sua negatividade? Há uma tradição persistente que mistifica e eleva o silêncio (vide Pirro, Beckett, Melville, etc.). De forma avessa, há quem se revolte contra a linguagem; se ressinta, e, como o artista kafkaesco, prefira morrer por não ter encontrado alimento adequado nela (vide Valter Hugo Mãe ou as tradições líricas da poesia portuguesa e da literatura de amor cortês, segundo a qual, diz Lacan, nos afastamos).


Uma das poucas coisas que Lacan captou adequadamente de Hegel foi a passagem de monismo para dualismo responsável pela criação retroativa do sentido que fará par conceitual com o elemento demandante de seu fundamento (evidência disso no S11). Não é picuinha gratuita: ele não leu a fenomenologia do espírito por completo, e ressaltarei isto: leiam o S17 (aliás, que a troika slovena com Dolar, Zizek e Zupancic, ou mesmo o Safatle, no que d'A paixão pelo negativo toca nesse assunto, não tenham denunciado isso, com as consequências do estatuto epistêmico da coisa, é interessante.) Tendo a criação retroaotiva do silêncio sendo fundado pela fala enquanto uma premissa e que não haja, em registro objetivo e subjetivo, ausência absoluta de som enquanto outra, passemos ao ambiente clínico.


Claro que há a pressuposição de uma simetria na dimensão fenomenológica mental, e não poderíamos pôr tal dimensão enquanto pertencente a um outro domínio com outra natureza. Daí advém que o silêncio é uma abstração do mesmo tipo da do círculo (intencionalmente escolhido aqui em função da topológica lacaniana). Ainda que se tome como postulado momentos onde só se capta imagens mas não há reverberações proposicionais nos pensamentos, assumimos isto em termos de gradação de não-fala. O mais próximo do silêncio seria a mais não-toda fala, portanto - e aí, em perspectiva lacaniana, há muita linguagem. O outro pilar do argumento-dúvida que elaboro a partir do texto se segue inevitável se queremos pensar clínica e silêncio.


Se dizemos que não se trata de ideal estoico (LACAN, S8); que sejamos afetados porém que lidemos com isso, antes de mais nada, a presença real do sentido etimológico - lembrando a linguagem enquanto a integral de erros persistentes entre gerações (LACAN, O aturdito) - da noção de análise e suponhamos que caminhar em direção ao silêncio é retirar camadas de falas que vamos construindo ao escutar. - Não é só - parafraseando Zygouris (em Psicanálise e Psicoterapia) - que nossas intervenções sejam para nós o que o sintoma/sinthome é para a analisante; é que o que faz par com as intervenções, tal como o sinthome para o sintoma, é o que acontece na pausa das construções que fazemos. E o nome disso não é apófase, epokhé nem nada do tipo.


Se o analista é condição de fala, o silêncio é condição de analista. É uma forma de acessar a dimensão analítica (em sentido filosófico) da elaboração: deixar uma decomposição cujo agente em atividade não somos nós. O que sobrará se tentarmos apenas sair eliminando tudo? A última coisa em mente, o último fio nos segurando acima do poço de angústia que são as infinitas janelas entre os entendimentos (entre as palavras) de quem escutamos. Por quê sobrou o elemento x e não y? Não surpreende que a condição de escuta seja tão irregular quanto o ato. A temporalidade para exercitar tal silêncio; a sofística do que é tido como elemento indivisível: "ah, senti x; levo isso para a análise. É suficiente." deixa de lado n outras possibilidades. Qual a racionalidade que elege esse sentir como elementar? Digno de alerta e separação de intervenções?


Quais os momentos em que se considera enquanto legítima essa posição? Onde mais deslegitimamos esta ação, é onde mais há as tendências interpretativas as quais nos guiam e, aparentemente, nos mantemos alheios sobre seu funcionamento. Neste momento, em que o analisante está falando, outra forma de proceder na atualização e continuação da construção da práxis se abre. Aí o silêncio é um kairós. É o tempo lógico de psicanalisar. E isso é difícil de apreender. Daí, no Seminário 22, Lacan dizer que o analista é a apreensão adequada do efeito de um dizer silencioso. Torna-se suportável a angústia do silêncio e o fazemos não por semblante ou outra razão teórica, mas por testar as razões teóricas que elegemos como guias de nossa conduta. Não entro no debate sobre se lacanianes são fries, mas há modo mais fervoroso de se angustiar nesse papel?


Se "as palavras são manchas desnecessárias no silêncio e no nada" (BECKETT, in: the calmative) é bom lembrarmos que setting analítico é antônimo de lavanderias. É ainda melhor lembrarmos que manchas só existem em função de sua ausência. A limpidez do que forma nossos funcionamentos não deve ser calada só porque é silenciosa. Isso é falação desnecessária.




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